Natal e textos
Chega o primeiro natal, tendo este espaço na DW Brasil, e pensei que seria interessante falar sobre um par de textos dedicados à data na literatura brasileira. Basta pensar em “natal” e “poema” para que o primeiro a vir à mente seja o famoso “Poema de natal”, de Vinicius de Moraes: “Para isso fomos feitos: / Para lembrar e ser lembrados / Para chorar e fazer chorar / Para enterrar os nossos mortos.” É um poema triste, quando pensamos que a data deveria ser a mais alegre dentro do calendário religioso cristão. O começo da esperança. A chegada da esperança. Religar. Unir deus e homens, mas pelo signo da morte. Mas é difícil pensar na manjedoura e não ver ao fim da trama a cruz. Quando criança, pensava que manjedoura fosse sinônimo de berço. Mas é o comedouro. Talvez todo berço tenha algo de manjedoura, ali deitados, à espera de ser mastigados.
Há também aquele “Conto de Natal” de Rubem Braga, que transpõe para algum rincão do Brasil a viagem de José e Maria, “— Eu de lá ouvi os gritos. Ô Natal desgraçado! — Natal?”, que termina também de forma não menos triste, “O menino Jesus Cristo estava morto.” Pessoalmente, outro famoso conto sobre a data, “O peru de Natal” de Mario de Andrade, tem umas conexões dolorosamente familiares para mim, que perdi meu pai também há cerca de cinco meses: “O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas.” Mas não vou passar este natal em família, já que a minha vive do outro lado do Charco Atlântico. Vou passar com a família postiça em Berlim.
Alguém se lembra daquele impressionante poema de Machado de Assis, o “Soneto de Natal”, que quase parece saído da produção da oficina irritada de Carlos Drummond de Andrade?
Soneto de Natal
Machado de Assis
Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,
Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.
Escolheu o soneto… A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.
E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
“Mudaria o Natal ou mudei eu?”
Mas meu poema de natal favorito, e talvez o mais lúgubre, seja o pouco conhecido “Natal 1961”, de Murilo Mendes. O poema adquire ainda mais força quando pensamos na importância do cristianismo para a obra do poeta mineiro, que um dia quis, com seu amigo Jorge de Lima, restaurar a poesia em Cristo.
Natal 1961
Murilo Mendes
Deslocados por uma operação burocrática – o recenseamento da terra – a Virgem
e o carpinteiro José aportam a Belém.
«Não há lugar para esta gente», grita o dono do hotel onde se realiza um congresso
de solidariedade.
O casal dirige-se a uma estrebaria, recebido por um boi branco e um burro cansado
do trabalho.
Os soldados de Herodes distribuem alimentos radioativos a todos os meninos de menos
de dois anos.
Uma poderosa nuvem em forma de cogumelo abre o horizonte e súbito explode.
O Menino nasce morto.
(in Poesia Completa e Prosa, Nova Aguilar, 1994)
Murilo Mendes apresenta-nos uma visão distópica da sociedade de consumo que já se formava, algo tão desmascarável em tempos de Natal como celebração do comércio. Com todas as diferenças entre eles, o poema sempre me faz pensar em Pier Paolo Pasolini, e é muito forte, para mim que os amo a ambos, saber que os dois habitavam a mesma cidade de Roma, por tantos natais. Não sei se algum dia se conheceram. Sei que nenhum dos dois viu o natal de 1975 ou os subsequentes, já que morreram ambos naquele ano, Murilo em agosto, Pier Paolo em novembro.
Chegou o Natal. Passe-o com aqueles que ama. Nunca se sabe se será o último.