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Sobre “Uns contos”, de Ettore Bottini
Com sua morte prematura em dezembro de 2013, durante uma cirurgia cardiovascular, sabíamos que, com Ettore Bottini, o país perdia um de seus melhores artistas gráficos, um profissional competente e apaixonado dos bastidores da literatura. Visível, mas invisível, como tantos profissionais excelentes de bastidores na labuta de fazer os grandes textos chegarem a seus leitores.
Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, lamentou a morte do colega em texto que o chamava de um dos grandes e primeiros responsáveis pelo aspecto visual dos livros da editora. Bottini projetou para a Companhia das Letras, entre dezenas de outras editoras, capas de volumes dos brasileiros Alfredo Bosi, José Paulo Paes e Decio de Almeida Prado, assim como dos estrangeiros Jean Starobinski, Edmund Wilson, Roger Bastide e Gérard Lebrun, entre inúmeros outros. Seus projetos de capa para as redescobertas de grandes livros, como Lavoura Arcaica e Um Copo de Cólera, de Raduan Nassar, são emblemáticas de seu estilo limpo, legível, elegante. Sem firulas ou fuzuê, alguém diria lá pelas bandas onde nasci, ainda que o meu próprio uso dessas palavras possa parecer firula e fuzuê. Mas, se faço uso dessas palavras, é por motivo que elaboro adiante.
A publicação póstuma de Uns contos (São Paulo: Cosac Naify, 2014), volume com 11 narrativas curtas de Bottini, seguidas de sete “aparas”, ou começos de contos, mostra-nos que perdêramos em 2013 não apenas um excelente artista gráfico, mas também um impecável artista textual, um escritor de verdade escondido em meio aos celebrados incapazes. E que nos deixou alguns dos melhores contos da literatura brasileira deste novo século. O escritor cuiabense Joca Reiners Terron o diz de maneira clara e direta no título de sua resenha: Livro Uns Contos, de Ettore Bottini, já nasce clássico [Folha de S. Paulo, 22.03.14]. Não poderia estar mais de acordo. Terron fala ainda da “linguagem de talhe clássico, da minúcia vocabular com predileção por expressões incomuns (’embarafustou para a rua’, lê-se em Todos os Medos) e o jargão de ambientes que ressurgem no entremear das histórias, como o do turfe, da marinha e da pesca fluvial, e em muito bem-vindas paisagens rurais que destoam da onipresença urbana no conto brasileiro contemporâneo”.
Bottini nasceu em Blumenau, Santa Catarina, em 1948. Estudou na Marinha de Guerra e chegou a iniciar a faculdade de Arquitetura antes de dedicar-se à arte gráfica, trabalhando para várias editoras e projetando centenas de livros. Sua passagem pela Marinha nos demonstra a origem de seu uso seguro do vocabulário e certa rotina do mar para um conto como Irmãos de Armas, sobre marujos brasileiros em um navio atracado em Montevidéu, onde perambulam pela cidade. O mar retorna em Material para a um Conto, que nos leva ao policiamento britânico dos mares após o Aberdeen Act de 1845 – entre a Rainha Vitória, da Inglaterra, e Pedro 2º, do Brasil –, num texto que ressuscita de forma convincente, em plena literatura brasileira, a narrativa sobre piratas.
Nas palavras de Terron, as paisagens “rurais” de Bottini, talvez resultem de uma vida iniciada neste espaço cultural algo indefinido, que atravessa diversas fronteiras estaduais. Um espaço geográfico a que geralmente damos o nome de “interior” e que perpassa torrões de terra de Goiás e Minas Gerais a Paraná e Santa Catarina, longe dos litorais e capitais, passando por cidadezinhas de São Paulo e Mato Grosso. Mudam-se as comidas e os sotaques, mas permanece uma certa modorra de verões gastos em pescarias à beira de rios e lagos, onde decisões familiares importantes são tomadas em churrascos em meio a perrengues sob a sombra de mangueiras.
Senti um reconhecimento desse ambiente cultural interiorano, tendo nascido nas terras caipiras de São Paulo, em contos como As Provisões do Tempo, sobre um dono envelhecido da mercearia de uma cidadezinha que se recusou a crescer; e Hey, Joe, sobre o neto matador de aluguel de uma família próspera de fazenda. Há ainda O Mesmo Rio, sobre a reunião dos membros de uma família na terra natal antes do retorno à capital.
Em sua escrita, está presente a mesma elegância e legibilidade de suas capas. Sim, há contos de “talhe clássico”, nos quais Bottini recusa epifanias construídas. Não há revelações repentinas, não há catástrofes surpreendentes. Não há estrela cadente, sem aviso: há a descoberta de que o cometa Halley passará em 14 anos. Tudo à espera, até o maravilhoso e extraordinário tem anúncio. Nada fora dos eixos, ainda que os eixos sejam tortos. A espera do próprio destino, igual ao do amigo velho, enquanto se observa o desenrolar das decepções da velhice. Há o luto lento em um conto tão bonito como Mundo Natural, no qual um homem, após viajar milhares de quilômetros da capital ao interior, onde enterrou o pai, e então de volta à sua casa, chega à descoberta do que é a dor da perda de forma gradual, como anestesia que perde o efeito lentamente, observando uma mariposa presa em sua cozinha.
Ainda que algumas de suas expressões possam parecer incomuns, seu vocabulário sempre parece adequado ao ambiente em que surgem para definir, nomear, e, num tom baixo, sem gritaria, louvar. A um leitor da cidade grande, talvez pareça estranho ler “coaxar” se há anos não vê um sapo. Se lê “brim”, dentro de seus jeans, sem jamais ter visto um daqueles velhos senhores em suas calças de brim. Para certos leitores, um lambari será sem dúvida coisa raríssima, e capim é só algo que se vê bordeando rodovias. Por que haveria de aparecer com frequência na literatura? Estamos preocupados com coisas maiores. Não, não vejo firulas nem fuzuê, tudo o que vejo é precisão.
Bottini parece-me um grande observador da alma humana, mas não cai jamais na tentação de criar situações inusitadas e fora do comum para desentranhar verdades escondidas sob as ilusões de si mesmos, que talvez pudessem enovelar suas personagens. Sua tática parece ser simplesmente a de olhar com calma, dar-lhes tempo para que se revelem. Encarar essas pessoas como se escondido atrás de uma cortina puída, deixando-as em seus ambientes naturais, para que no minuto em que mais se sintam protegidas dos olhos de todos, suas naturezas saltem à pele e a pipoquem, façam-se visíveis. E tudo isso no espaço exíguo do conto.
Sim, seus contos, tão poucos, fazem muito. Há os que possuem realmente o talhe clássico de que falou Terron. Teriam sido grandes textos entre os nossos modernistas e são grandes textos entre nós, hoje. Perenes. Mas que dizem muito de um mundo que persiste por trás das grandes notícias das grandes cidades, ainda que desapareçam cada vez mais, inundados por barragens para gerar eletricidade para as grandes notícias destas mesmas capitais. Histórias pequenas, mas grandes, de gente pequena, mas grande, perdidas na pequenez crônica do interior. Unem-se a contos que ficarão para sempre como clássicos em minha cabeça, como alguns de Mário de Andrade e Otto Lara Resende, para citar dois com os quais vejo afinidades estilísticas em Bottini.
Por fim vale dizer que, sob sua sutileza, há no livro contos que apontam sim caminhos novos e possíveis para a produção contemporânea, como aqueles exemplares Um Turno de Serviço, que retoma o episódio do Gólgota sob perspectivas bastante singulares, ou Material para um Conto, entremeando história e ficção. O Brasil tem certa obsessão por celebrar apenas os grandes autores de grandes obras, as que possam ocupar mil páginas ou cinco volumes em capa dura e papel-bíblia. Com isso, muitas vezes perde o prazer intenso de escritores discretos como Ettore Bottini, autor de um dos clássicos do século 21 neste Uns Contos. Tento contribuir aqui para que seus contos alcancem capitais e interiores.
Autores alemães e sua influência no Brasil
Quando se pensa na literatura brasileira e em sua relação com as literaturas de outras nações, percebe-se que ela trilhou caminhos parecidos aos de outros países do continente americano. A literatura latino-americana sempre teve uma tendência francófila. Foi em Paris que César Vallejo sonhou sua morte con aguacero, e foi na mesma cidade que Paulo Prado afirma que Oswald de Andrade descobriu o Brasil. Escritores brasileiros importantes dedicaram-se à tradução de franceses, como Marcel Proust, vertido ao português por Mario Quintana e Carlos Drummond de Andrade, e a poesia francesa teve um papel importante até meados da década de 1950, quando pensamos na posição central que o Grupo Noigandres dedica a Stéphane Mallarmé. O idioma francês, lingua franca de cortes e cenas literárias por muito tempo, estendeu sua influência ao simbolismo russo de Alexander Blok, do brasileiro Cruz e Sousa, e o surrealismo deixou sua marca em literaturas do mundo todo, especialmente na latino-americana, ainda que tenha tido menores adeptos no Brasil.
A partir da década de 1950, especialmente com os Beats norte-americanos e a ascendência política dos Estados Unidos no pós-guerra, este papel começou a ser tomado pela língua inglesa. Já se escreveu muito na crítica de arte sobre a transferência da Capital Cultural do mundo no pós-guerra, de Paris para Nova York. Na literatura, a mudança foi a mesma. Muitos escritores contemporâneos brasileiros, especialmente poetas, mantêm uma relação importante com a literatura francesa, como vemos no trabalho que Carlito Azevedo, que divulgou no Brasil autores do século 21, como Christophe Tarkos e Natalie Quintane. Marília Garcia, por sua vez, mantem um trabalho de pesquisa pioneiro sobre a poesia de Emmanuel Hocquard. A literatura norte-americana, no entanto, parece comandar a atenção da maior parte dos autores brasileiros contemporâneos.
Agora qual o papel da literatura alemã no diálogo de autores brasileiros com estrangeiros? Os alemães tiveram seu primeiro momento de grande influência literária com seu Romantismo, certamente. Goethe e Heinrich Heine tiveram seus admiradores no país. Machado de Assis e Fagundes Varela traduziram Heine, e Castro Alves se basearia no poema “Das Sklavenschiff” (1853) para a composição de seu poema mais famoso, “O Navio Negreiro” (1869). Manuel Bandeira traduziria ainda, além de Goethe e Heine, peças como Maria Stuart, de Schiller. Também o expressionismo germânico encontrou seus divulgadores no Brasil, com Georg Trakl traduzido por André Vallias, por exemplo, que há poucos anos deu à língua portuguesa também seu Heinrich Heine definitivo, em traduções verdadeiramente geniais para poemas do alemão em português. Augusto de Campos traduziu com admiração August Stramm, outro expressionista até então pouco discutido no Brasil, e dedicou-se a traduções novas de poemas de Rainer Maria Rilke e de autores especialmente difíceis, como Arno Holz e Quirinus Kuhlman.
Do modernismo alemão, certamente o autor mais influente no Brasil foi Bertolt Brecht, em especial no teatro. Dentre os romancistas, Thomas Mann foi traduzido e muito lido, como em todo o mundo, mas não se pode dizer que tenha deixado marcas. O maior romance do Modernismo alemão e talvez uma das obras mais experimentais da língua alemã, Berlin Alexanderplatz (1929), de Alfred Döblin, jamais parece ter encontrado a mesma acolhida de culto das obras do austríaco Robert Musil, por exemplo.
Os poetas concretos estabeleceram pela primeira vez um diálogo mais forte e direto com a literatura alemã a partir da fundação do movimento da Poesia Concreta. Na Alemanha, fala-se sobre a dupla nacionalidade da poesia concreta com mais frequência que no Brasil. Os diálogos de Eugen Gomringer e Max Bense com Haroldo de Campos e Décio Pignatari são momentos altos da relação entre as literaturas das duas línguas, e o livro Inteligência Brasileira, de Bense, é um belo momento de encontro entre duas culturas. Mas além da relação do Grupo de 45 com a ala mais órfica da poesia germânica, com seu culto a Rilke, e a relação do Grupo Noigandres com sua ala mais construtivista, muitos autores interessantes e amplamente conhecidos, amados e lidos na Alemanha permanecem completamente desconhecidos no Brasil.
Talvez um dos exemplos mais gritantes seja o poeta Rolf Dieter Brinkmann (1940–1975). Brinkmann é um dos poetas mais populares da Alemanha. Tradutor de Frank O´Hara e introdutor na poesia alemã de certas técnicas que vinham dos Beats, sua poesia está entre aquelas que são apreciadas até mesmo (e talvez especialmente) pelos leitores menos contumazes de poesia. Sua vida e morte prematuras adicionam, é claro, pitadas de mito à sua popularidade. Morto em um atropelamento na cidade de Londres, quando voltava bêbado para casa após uma leitura, talvez ele exerça sobre os leitores alemães o mesmo charme que Paulo Leminski parece ter sobre alguns brasileiros, guardadas as devidas diferenças estilísticas entre suas obras. Mas mesmo Brinkmann flertou com a canção popular em seus poemas, ainda que em seu caso a prática o unisse à linhagem de Heine, quando a de Leminski estava na canção popular. No entanto, as traduções de André Vallias para Heine, usando a tradição do samba para ligar os versos de Heine à mente brasileira, mostram que a literatura brasileira e a alemã não precisam ser tão estrangeiras assim uma à outra.
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