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Os rostos do poeta Ricardo Aleixo

Reunindo textos escritos entre 2010 e 2015, Impossível como nunca ter tido um rosto é a publicação mais recente do belorizontino Ricardo Aleixo, um dos mais importantes artistas da palavra na República. Eu tento não usar esses superlativos, mas com Aleixo sinto-me mais do que justificado. Pois, se o objetivo deste texto é comentar seu último livro, é impossível (como nunca ter tido um rosto) não pensar em todas as suas atividades neste período que a obra abarca.

Poeta, músico, performer, compositor, produtor cultural, artista plástico, editor, agitador – eu poderia ter resumido tudo com a primeira das palavras: poeta. Mas ainda vivemos dias em que isso não seria compreendido em sua acepção completa, esta que Ricardo Aleixo vem incorporando e encorpando desde os anos 1990. Sua presença tem sido sempre esta, a de pluralizar o ofício único, unificar o ofício plural. Meu xará, prefiro sempre me referir a ele como Mestre Aleixo.

Ler esses textos de meia década reunidos é deparar-se com sua voz e seu gesto, agora no papel. Mas quem quer que o tenha visto em ação não consegue deixar de ouvir sua entonação saltando da página, as quebras de linha surgindo como pausa na garganta. Nossas línguas são, afinal, todas fonográficas. O símbolo visual leva ao som. E Aleixo sabe usar isso para fazer da página palco. Alguns deles são de uma beleza tão direta, tão nua. Mas, dirigidos a quem? Veja, por exemplo, esta pequena cantiga entre a intimidade e o escárnio:

Queridos dias difíceis,
acho que já deu – embora

eu considere prematuro
um definitivo adeus.

Querendo, voltem. Minha
casa é de vocês. Agora,

pensem bem se será mesmo
saudável nos testarmos em

novos convívios tão longos
(também não sou fácil) como

foi desta vez. Menos mal se
vierem em grupos – tantos,

em tais e tais períodos do mês.
Topam correr o risco? Vão resistir

até o fim? Podem vir, eu insisto.
Mas contem primeiro até três.

Aqui, como em certa poesia lírica brasileira, a do minimalismo de cantos e quinas, textos que são objetos pontiagudos, em que a fala controlada é de mansidão enganosa, é um murmúrio com os dentes cerrados, vê-se um lamento, mas lamento sem a autopiedade de certa poesia nossa, de quem se mantém em pé, de pé, não se dobra, e se pode ser lido na clave do canto pessoal, é também um chamamento à resistência. Como nos poemas mínimos de Oswald de Andrade ou de Bertolt Brecht. E sendo um texto de Ricardo Aleixo, vê-se que seu acabamento não é o que ignora as transformações entre registro oral e escrito: o texto é dizível.

Eu comecei a ler o livro nos subterrâneos de Berlim, cruzando a cidade de Leste a Oeste. Sentado entre pessoas que não entendem a língua de Aleixo, a minha, a sua, era uma sensação estranha perceber a voz do poeta controlando minha respiração com o ritmo dos poemas. Dá até febre nos pulmões. E os músculos ficam tesos quando ele nos lança em meio a nossa guerra civil de fricção, há séculos, como neste que é um dos melhores poemas satíricos dos últimos anos (o melhor satírico sempre político), que já postei aqui e o faço mais uma vez com um excerto:

Conheço vocês
pelo cheiro,

pelas roupas,
pelos carros,

pelos anéis e,
é claro,

por seu amor
ao dinheiro.

%

Por seu amor
ao dinheiro

que algum
ancestral remoto

lhes deixou
como herança.

Conheço vocês
pelo cheiro.

Outros textos com esta potência aparecem no livro, como Na noite calunga do bairro Cabula. No bairro de Salvador ocorreu a Chacina do Cabula, em que, durante uma operação da Polícia Militar realizada em 5 de fevereiro de 2015, 12jovens negros foram mortos. Repetindo o escândalo das pseudoinvestigações conduzidas pela polícia e a Justiça, os policiais envolvidos foram “inocentados”, alegando “legítima defesa”. Aleixo escreve: “Morri quantas vezes // na noite calunga? Na noite trevosa, // noite que não finda, / a noite oceano, pleno // vão de sangue, / morri quantas vezes // na noite terrível, / na noite calunga // do bairro Cabula?”

Encerro com uma pequena história: tive o prazer de convidá-lo para minha curadoria de literatura do Festival Artes Vertentes, em Tiradentes, Minas Gerais, em 2014 e 2015. Foi nesta última edição que, apresentando-se na Igreja do Rosário dos Pretos – construída por escravos – pude ouvir seu corpo e ver sua voz invocar o orixá da comunicação, Exú, entre as pedras erguidas no tempo em que o horror existia em meio ao silêncio. Cada sílaba de sua voz parecia destruir e reerguer aquele templo, mas em uma comunidade real, entre poeta e ouvintes. É difícil explicar a força daquilo. Esta é a beleza também da performance: há que se estar presente.

Cansado das mesmices do trato com editoras, sempre em busca da literatura-Omo, Ricardo Aleixo, um dos maiores artistas da República, lançou o livro em edição própria. Que seus concidadãos todos tenham em mãos e garganta, o quanto antes, este álbum de sua presença desperta entre nós.

Data

quarta-feira 22.02.2017 | 10:46

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