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O torcicolo do Anjo da História

Em suas “Teses sobre a História”, Walter Benjamin escreve sobre um quadro de Paul Klee: “Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso”.

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O mundo não tem trégua. Não, o planeta não tem trégua e o mundo não dá trégua. O mundo, como geralmente usamos esta expressão, parece ser um casamento entre tempo e espaço, o planeta mais a História, que é invariavelmente humana a nossos olhos. Fomos ensinados desde cedo que o planeta foi criado para nós. Nos pertence. Podemos fazer dele o que quisermos. Sempre a imagem do Anjo de Walter Benjamin como a mais apta: o rosto voltado para trás, de onde sopra o que pode ser apenas um tufão, a História, e os escombros e ruínas acumulando-se sob nossos pés. Será isso que quis dizer Carlos Drummond de Andrade quando escreveu que “o Mundo não vale o mundo, meu bem”.

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A lama que matou seres vivos: humanos, peixes, cavalos, cágados – nem havia se assentado, chegado a seu destino, o oceano, onde seguirá matando. Na sexta-feira (13/11), eu havia organizado com Andrea Mueller um evento em Berlim, chamado Symposium, que em grego significa “beber juntos”, como no famoso simpósio descrito por Platão, com a presença de Sócrates. Naquela noite, homens e mulheres, brancos e negros, alemães e estrangeiros sentaram-se ao redor de uma mesa e conversaram sobre o conceito de “comunidade”. Luke Troynar, da banda Bad Tropes, cantou duas canções. Ouvimos Hannah Arendt, em sua entrevista a Günter Gaus em 1964, falar sobre alianças e comunidade e interesses comuns. Nossos celulares estavam desligados. Não sabíamos que, enquanto estávamos ali, compartilhando nossos experiências, nossas diferenças, o que nos une e separa, um banho de sangue acontecia em Paris. Ocupado com a organização, não sabia sequer que um banho de sangue já havia ocorrido em Beirute. Ao fim da noite, veio a notícia. Pessoas correm para seus telefones, vários têm amigos e família em Paris. Alguns são amigos dos membros da banda que tocava no Bataclan, a Eagles of Death Metal. O número de mortos vai crescendo, as informações são desencontradas.

Na manhã seguinte, acordei com os sentimentos mais contraditórios possíveis. Todos querem uma narrativa, uma explicação, e a imprensa começa a inundar-se delas como o Rio Doce inundou-se da lama da Samarco e da Companhia Vale do Rio Doce. Há artigos excelentes, há artigos ruins, há a enxurrada de solidariedade. Em Callais, um campo de refugiados ardeu. Todos têm medo do que a direita fará com isso. Judith Butler escreve sobre o estado de emergência, que dá mais poderes ao governo. A discussão liberdade versus segurança nas televisões. Alguns franceses pedem a militarização da polícia. Para um brasileiro, onde o número de mortos de Paris é diário, corre o frio na espinha. Solidarizar-se. Mas solidarizar-se com quem? Há sangue em Beirute, há sangue em Paris, e, em Mariana, não se vê o sangue porque ele está coberto de lama tóxica. Há carcaças de peixes e cágados às margens. Fotos de um potro sendo salvo. Da Presidente da República, há silêncio. As relações públicas da Samarco e da Vale do Rio Doce apressam-se. O que minha mãe costumava dizer, “abençoado Brasil sem terremotos e maremotos”, é mudado. Ah! Um terremoto causou tudo. Não a má engenharia, a falta de segurança, as técnicas de mineração obsoletas. Enquanto todos choram por Paris, a Presidente da República começa a ajudar as relações públicas das empresas, com um decreto que diz “considera-se também como natural o desastre decorrente do rompimento ou colapso de barragens que ocasione movimento de massa, com danos a unidades residenciais.” (Decreto N° 8.572, de 13 de novembro de 2015). Antes de qualquer investigação séria. Aquela foi verdadeiramente uma sexta-feira 13.

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RIO DOCE
RIO DA SAMARCO
RIO DOÇAMARGO
RIO AMARGO

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Uma narrativa. Precisamos de uma narrativa. Mas, como? Começo, meio e fim? Não há fim. Estamos no meio de uma besta-fera, ou, nas palavras de Efrim Menuck do coletivo Godspeed You! Black Emperor, “in the belly of this horrible machine, and the machine is bleeding to death”. Somos como Jonas no ventre da baleia, mas sem um deus que ouça nossas súplicas e nos faça ser vomitados na margem. Fôssemos, morreríamos na lama. A terceira margem do rio é doravante a lama. Sem fim, no meio. E o começo? Na manhã do sábado, fui reler informações sobre o Golpe de Estado no Irã em 1953, orquestrado pelos Estados Unidos e Grã-Bretanha, que depôs o primeiro-ministro Mohammad Mosadegh, eleito democraticamente, para fazer voltar o xá assassino e ditador, Reza Pahlavi, que defendia os interesses do “Ocidente”. Como os Estados Unidos ainda chamam de aliados os reis sauditas, acusados de financiar o Daesh (não o chamo de Estado Islâmico porque não o considero nem Estado nem Islâmico, ele não fala por todos).

Marcus Fabiano Gonçalves escreveu sobre o massacre de civis argelinos por tropas francesas em 1945. Artigos mencionam a oposição e o enfraquecimento de Nasser por governos do Ocidente durante a crise do Canal de Suez. Outros, as divisões aleatórias e concessões a ditadores aliados por parte de França e Grã-Bretanha durante o processo de independência de seus protetorados no Oriende Médio. Em meio a isso, leio a declaração do Daesh, assumindo responsabilidade pelos atentados em Paris, chamando a cidade de “capital de abominações, e aquela que carrega o Estandarte da Cruz na Europa”. Ou seja, uma referência às Cruzadas, de um milênio atrás, como as Cruzadas já haviam aparecido nos discursos de líderes do Ocidente em suas guerras contra países do Oriente. É um ciclo de revanches infindável.

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Alguns de nós bombardeiam os hospitais deles.
Alguns deles bombardeiam nossos estádios.

Hollande declara que não terá misericórdia contra pessoas que cometem crimes hediondos em nome de um deus que chamam de “misericordioso”. Não é assim também chamado o deus do Ocidente? Nós, eles. Mas, quem são “eles”? E “nós” quem, cara pálida? Até hoje sinto abstrata a oposição “Ocidente/Oriente”. Como brasileiro, cresci ouvindo a oposição “Norte/Sul”. Às vezes, quando dizem “Oeste” perto de mim, tenho o impulso de dizer: “Você deve querer dizer Noroeste, não? Não nos meta na sua bagunça”.

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Imagens do sangue de inocentes serão usadas para derramar mais sangue de inocentes. Nisso, somos parecidos. Porque há tantos inocentes morrendo de cada lado, enquanto líderes sanguinários fazem seus jogos geopolíticos. A guerra está em toda parte, e nas palavras. Cada lado brigando por sua versão do que é “abominável”. O que eu queria é ver os líderes do Daesh presos por seus crimes, assim como ver presos George W. Bush e Dick Cheney por seus crimes de guerra.

Naquela noite do simpósio, eu havia levado dois livros comigo. Um deles era a tradução de Edward FitzGerald para o Rubaiyat de Omar Khayyam. Posto aqui um deles, em tradução de Alfredo Braga:

Acorda… e olha como o sol em seu regresso
vai apagando as estrelas do campo da noite;
do mesmo modo ele vai desvanecer
as grandes luzes da soberba torre do Sultão.

O outro livro trazia a tradução inglesa dos poemas reunidos do polonês Zbigniew Herbert. Em “Crônica de uma cidade sitiada”, ele escreve (aqui em tradução de José Miguel Silva):

evito comentários mantenho sob controle as emoções descrevo fatos
parece que só os fatos têm valor nos mercados estrangeiros
com uma espécie de orgulho quero dizer ao mundo
que graças à guerra criamos uma nova raça de crianças
as nossas crianças não gostam de contos de fadas brincam aos tiros
dia e noite sonham com sopa pão ossos
tal como os cães e os gatos

Encerro com os últimos versos neste artigo, que são os últimos versos em tradução minha de um poema de Warsan Shire, poeta somali que vive na Inglaterra, aonde seus pais emigraram como refugiados:

mais tarde naquela noite
eu pus um atlas no colo
passei os dedos ao longo do mundo
e perguntei
onde dói?

ele respondeu
por toda parte
por toda parte
por toda parte

Data

terça-feira 17.11.2015 | 12:18

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