Mais blogs da DW DW.COM

Angélica Freitas e a crítica de amadores

angelica freitas

Em texto publicado na revista Musa Rara no dia 8 de agosto deste ano, o crítico e professor Amador Ribeiro Neto faz vários ataques ao trabalho da escritora gaúcha Angélica Freitas, num tom não apenas violento como cheio de misoginia. Em tom jocoso, refere-se à autora como “poetisa” – expressão que a própria satiriza em seus textos e que a maioria das pessoas sabe ter caído em desuso no Brasil há pelo menos duas décadas, e chega a apropriar-se de versos seus em frases com implicações que me parecem asquerosas, como no trecho: “Então, por que abre a boca, menina? Oras, ‘esquece este papo’. E não reclame se enfio-lhe ‘os talheres’.” Em um país civilizado, o autor, assim como Edson Cruz, editor da revista, seriam chamados a desculpar-se em público.

Uma das mais lidas e polêmicas autoras da nova produção, seu trabalho tem gerado não poucos mal-entendidos. A crítica nacional, presa muitas vezes a pensar a produção brasileira dentro de um sistema literário nacional, acaba fazendo comparações apenas ao poema-piada dos primeiros modernistas, e às paródias da poesia escrita na década de 70. Mas a tradição da poesia satírica, tanto nacional como internacional, é muito mais ampla. Na Idade Média, perambulavam pela Europa os poetas que ficaram conhecidos como Goliardos. Membros do clero, eram uma trupe desbocada, bêbada e licenciosa, que escrevia poemas satíricos e eróticos em latim, atacando a hipocrisia da Igreja e dos governantes. Entre eles estava Hugo Primas e o mais famoso, conhecido apenas como Arquipoeta Goliardo, que escreveu os versos: “Meu propósito é morrer nalgum boteco, / Para que eu tenha vinho perto da boca. / Assim os anjos cantarão bem bonachos: / Que Deus tenha piedade desse borracho.”

À mesma época, havia na França a prática das fatras e fatrasies, pequenas canções que são os antecedentes da poesia do nonsense de ingleses como Edward Lear e alemães como Christian Morgenstern. No século XX, o nonsense e a sátira formaram grande parte da excelente produção poética de alemães como Hans Arp e Kurt Schwitters. Dentro da tradição brasileira, podemos pensar nos poemas de Bernardo Guimarães, Sapateiro Silva e Qorpo-Santo.

Para criticar a poesia satírica contemporânea, espera-se que um crítico conheça esta tradição e se refira a ela em sua crítica. Assim como a de mulheres como Nathalie Quintane ou Harryette Mullen, que têm usado estas práticas para denunciar tanto a misoginia quanto o racismo, como nos versos de Mullen: “não se canse diretoria / dê prática à sua teoria / ela pergunta se é coisa de homem / ou coisa de pronome // desejando a ele sorte / deu-lhe os limões que chupa / disse-lhe benzinho ao cangote / melhore sua embocadura”.

Poemas de Angélica Freitas como “Sereia a sério” e “Rilke shake”, publicados em seu livro de estreia, a ligam a esta tradição. Um poeta deveria ser julgado por aquilo que faz, não aquilo que não faz ou até mesmo se recusa a fazer. Além disso, é importante pensar no que escreveu Ezra Pound, autor que é tão macaqueado por críticos contemporâneos: “Tristeza e solenidade estão completamente fora de lugar até mesmo no mais rigoroso estudo de uma arte originalmente destinada a alegrar o coração humano”.

Alguns críticos se vestem de um tom autoritário e sacerdotal para tratar de uma arte que se originou e foi destinada aos aspectos mais lúdicos do espírito humano. Mas nosso crítico em questão, aparentemente investido da função de proteger a poesia,  diz categórico: “poesia não é playground.

Adeus, jogos de linguagem que nos deram tanto prazer, prazer simples, aquele que alegra apenas pelo texto, tantas vezes pelo puro nonsense.

Não se invoca um poeta de uma tradição para criticar outra tradição. É ridículo que um crítico invoque Arnaut Daniel e John Donne para criticar poemas satíricos. São poesias com propósitos distintos. Como comparar John Donne e Kurt Schwitters? Na poesia medieval dos provençais, havia três práticas: o trobar leu, composições leves destinadas a um público amplo, o trobar ric, composições mais sofisticadas destinadas a um público mais especializado, e o trobar clus, estilo hermético geralmente usado em textos de poetas para poetas. Havia saúde nisso. Se a crítica anseia apenas pelo trobar clus, o estilo hermético, é óbvio que não haverá um público amplo para a poesia. É importante que haja composições para todos os públicos.

Rilke shake

salta um rilke shake
com amor & ovomaltine
quando passo a noite insone
e não há nada que ilumine
eu peço um rilke shake
e como um toasted blake
sunny side para cima
quando estou triste
& sozinha enquanto
o amor não cega
bebo um rilke shake
e roço um toasted blake
na epiderme da manteiga

nada bate um rilke shake
no quesito anti-heartache
nada supera a batida
de um rilke com sorvete
por mais que você se deite
se deleite e se divirta
tem noites que a lua é fraca
as estrelas somem no piche
e aí quando não há cigarro
não há cerveja que preste
eu peço um rilke shake
engulo um toasted blake
e danço que nem dervixe

Não é necessário conhecer a tradição satírica, a do Arquipoeta Goliardo, de Sapateiro Silva ou Kurt Schwitters para entender este poema. As centenas de pessoas que esgotaram as tiragens dos livros de Angélica Freitas não têm esta obrigação, e não precisam dela. Há uma busca pela graça de linguagem, não apenas graça como humor.

Quem tem, no entanto, obrigação de conhecer esta tradição é aquele se propõe a provar que o poema acima não presta, não tem valor algum, e o faz com tamanha impostura e desonestidade intelectual, como o fez Amador Ribeiro Neto em sua crítica.

Seja ou não central, seja ou não menor, essa tradição existe e é muito saudável para a literatura de um país. A meu ver, Angélica Freitas tem sucesso na empreitada, fazendo-o com rimas inteligentes, e em sua fusão, por vezes, de estruturas da poesia satírica e da lírica, com recurso ao humor autodepreciativo. É eficiente e emociona.

Quanto ao segundo livro da poeta, Um útero é do tamanho de um punho (2012), mais uma vez o crítico falha miseravelmente em julgar o trabalho por aquilo a que se propôs. Uma das estratégias, não apenas literárias mas de linguagem até mesmo de rua, em grupos que têm sido violentamente oprimidos ao longo dos séculos, é o de apropriar-se da linguagem do opressor para subvertê-la em seus valores. Os textos de Angélica Freitas no segundo livro, como os da série “uma mulher”, propõem-se a isso, e devem ser julgados nesta empreitada. Como é possível que o crítico pensasse que ela estava querendo “emocionar” com estes textos? É completamente absurdo.

uma mulher sóbria
é uma mulher limpa
uma mulher ébria
é uma mulher suja

dos animais deste mundo
com unhas ou sem unhas
é da mulher ébria e suja
que tudo se aproveita

as orelhas o focinho
a barriga os joelhos
até o rabo em parafuso
os mindinhos os artelhos

Isto é o que a poesia satírica faz há tempos, é a sua tradição, pensemos aqui em Sapateiro Silva, Kurt Schwitters ou, no pós-guerra, Dieter Roth.  É legítimo que um crítico prefira a poesia “séria”. Ele pode e deve saber mesmo diferenciar estas tradições. Isso, no entanto, requer um ato muitíssimo delicado do espírito: discernimento. Quando o crítico passa a querer hierarquizar estas tradições em linguagem pseudo-científica, percebemos de imediato que ele não possui capacidade para este delicado ato do espírito. A misoginia raivosa com que Amador Ribeiro Neto compôs seu texto apenas nos demonstra, mais uma vez, como o trabalho de Angélica Freitas, e de outras mulheres escrevendo no Brasil, segue sendo não apenas importante, como necessário.

Mas não devemos nos irritar em demasia. Eu, por exemplo, aprendi muito com este poema de Angélica Freitas, com o qual encerro este texto, por achá-lo tão apropriado para a ocasião:

às vezes nos reveses
penso em voltar para a england
dos deuses
mas até as inglesas sangram
todos os meses
e mandam her royal highness
à puta que a pariu.
digo: agüenta com altivez
segura o abacaxi com as duas mãos
doura tua tez
sob o sol dos trópicos e talvez
aprenderás a ser feliz
como as pombas da praça matriz
que voam alto
sagazes
e nos alvejam
com suas fezes
às vezes nos reveses

Data

terça-feira 12.08.2014 | 12:18

Compartilhar