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Primeiras impressões sobre o documentário “Outro Sertão”

Graças à generosidade de Adriana Jacobsen, que descobri ser minha vizinha no bairro de Prenzlauer Berg em Berlim, e de sua parceira Soraia Vilela, pude assistir ontem ao documentário Outro Sertão (2013), que retrata o escritor João Guimarães Rosa em sua passagem pela Alemanha Nazista como vice-cônsul brasileiro em Hamburgo, entre 1938 e 1942. O documentário tem sido bastante elogiado e recebeu o prêmio especial do júri por seu trabalho de pesquisa no 46º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

João Guimarães Rosa é um dos escritores mais misteriosos da Literatura Brasileira. De certa forma, ele raramente parece incitar incursões biográficas. Com sua escrita densa, dá trabalho suficiente aos exegetas estritamente literários. É claro que isso se dá também num país que tem tradição algo exígua no que diz respeito a biografias. Há pouco tempo, o trabalho de pesquisa de Benjamin Moser causou alvoroço com sua bela e  fundamentada biografia de Clarice Lispector, contemporânea de Guimarães Rosa, tendo ambos estreado em livro no mesmo período. Há quase nenhuma cena em movimento do escritor mineiro, e a entrevista inédita que as diretoras descobriram e incluíram no documentário certamente tem um valor especial para saciar esta curiosidade. O documentário ilumina um aspecto desconhecido da biografia de Rosa, e é compreensível que esteja sendo recebido com entusiasmo e, creio, especialmente carinho pela crítica nacional.

Eu precisaria, no entanto, apontar algumas discordâncias críticas. Assisti ao filme em Berlim, com dois amigos estrangeiros, um deles diretor francês de teatro e cinema. Houvesse visto o filme no Brasil, é possível que minha impressão tivesse sido outra, levado também pelo carinho e, especialmente, por estar entre pessoas que não necessitam de certa contextualização. Sabem quem foi o escritor João Guimarães Rosa e estão felizes por ter iluminada certa parte de sua vida, uma parte que tem ainda contornos tão heroicos e bonitos. Vi, no entanto, como disse, o filme em Berlim, com dois estrangeiros que não tinham o menor conhecimento sobre quem era João Guimarães Rosa. O escritor teve seu momento de fama na Alemanha, graças aos esforços de seu tradutor à época, Curt Meyer-Clason (1910 – 2012). O chamado Boom Latino-Americano também favoreceu alguns escritores brasileiros, como Guimarães Rosa e Jorge Amado. Hoje, porém, Guimarães Rosa é um ilustre desconhecido na Alemanha, o que se espera mude, quando for lançada a nova tradução de Berthold Zilly para Grande Sertão: Veredas.

Portanto, vendo o filme com estes amigos, creio que minha visão acabou sendo mais fria e crítica, analisando-o como documentário, para além do carinho e da curiosidade daquele que já tem informações. Neste aspecto, a julgar por meus dois companheiros de sessão, o filme, didaticamente, falha. Meus amigos comentaram ter saído do filme sem realmente saber quem era aquele homem, ou sua importância. Ainda que o documentário toque em sua obra literária, o faz de forma extremamente tangencial. Volta à sua vida escolar para nos relatar suas notas em alemão, tentanto criar certa simpatia, mas a cena parece não caber no filme, sem mencionar o salto estranho que faz ao passado. Neste aspecto, a montagem está certamente entre os maiores problemas do documentário. Salta de 1939 a 1941, retorna a 39, volta a 38, vai para o passado escolar do escritor, não segue uma cronologia consistente. É extremamente confusa a montagem. Não vejo a função cinematográfica desta escolha.

O filme parece depender, esteticamente, em demasia de nosso carinho e curiosidade pelo escritor, mas não informa muito. O material é certamente rico, mas saí do filme com a sensação de que o que foi mostrado em 70 minutos poderia ter sido mostrado com mais força em muito menos tempo, com uma montagem mais concisa. Quantas imagens de arquivo de Hamburgo precisamos ver? Quando o filme, já no final, mostra-nos um desenho de Guimarães Rosa e corta para cenas em um jardim zoológico, fiquei perplexo. Qual a função desta cena, ainda mais naquele momento do filme? O valor das imagens inéditas? Por que ali? Parecia quase inapropriado, seguindo em sequência as imagens que seguia. Cinematograficamente, além disso, a escolha de filmar textos e ter sua narração, ao mesmo tempo, é questionável.

O filme avança teses literárias, como a influência do período sobre a escrita de Grande Sertão: Veredas, mas não as prova ou, ao menos, desenvolve. Não há  leituras de passagens do livro, comparações com outros textos do período. A declaração fica perdida. É apenas uma asserção.

Quanto a uma contextualização do período entre Brasil e Alemanha, as tentativas são também tímidas, perdidas. É mostrado que o Brasil tentou evitar a imigração de judeus, mas ela comparece para intensificar o aspecto verdadeiramente heroico de Rosa. O nome de Getúlio Vargas, por exemplo, sequer é citado. Em 1938, quando Guimarães Rosa segue para a Alemanha, vivia-se o auge do Estado Novo, implantado no ano anterior. A violência de caráter étnico que Guimarães Rosa encontra na Alemanha daquele período estava também no país. Se a belicosidade e o racismo alemães influem na percepção política de Rosa, teria sido frutífero pensar nas violências e belicosidades brasileiras da época. A ideologia eugênica da Europa havia deixado suas manchas na política e história do Brasil. Basta pensarmos em Os Sertões, de Euclides da Cunha, se estamos falando de Outro Sertão. Entre 1938 e 1940, terminava o ciclo histórico do cangaço, com a morte de Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, e sua mulher Marina Bonita, e a exibição de suas cabeças degoladas na escadaria da prefeitura de Piranhas, em Alagoas. Com a morte em 1940 de Cristino Cleto, o Corisco, há um arco que retrocede à Guerra Total que foi Canudos, entre a República brasileira e sua dissidência. As perseguições políticas dentro do Brasil no período ficam invisíveis no filme. As próprias perseguições étnicas brasileiras não comparecem, quando sabemos que, em 1938, o candomblé ainda era proibido por lei do Estado Novo, e sambistas do Rio precisavam subir o morro, fugindo da polícia, enquanto os de São Paulo nem morro tinham para subir. Não se trata de equiparar o que houve na Alemanha nazista e no Brasil estadonovista. Não é equiparar, nem querer equivaler. Trata-se de uma contextualização. Qual é o outro deste Outro do título?

O filme depende em demasiado de conhecimento prévio e de carinho para sua recepção. Mesmo a entrevista de Rosa na televisão alemã depende desta curiosidade carinhosa pois, como entrevista em si, não tem grande interesse, é bem possível que por culpa do entrevistador. Não é como a de Clarice Lispector, em 1977, cheia de declarações marcantes e poderosas da escritora, com interesse que vai além de nosso carinho e curiosidade por ela. A entrevista de Rosa é simplesmente… como dizer isso? Bem, chata. Talvez seja a coisa mineira de esconder o ouro.

Tal como foi editado, acredito que o filme poderia ser muito mais curto sem perder força, pelo contrário, ganhando-a. Em todos estes aspectos, o documentário me parece tímido. Vi o filme com entusiasmo genuíno, mas infelizmente saí dele com a sensação de ter acabado de testemunhar uma oportunidade, não diria perdida, mas não aproveitada em todas as suas implicações possíveis.

Data

sexta-feira 08.08.2014 | 15:10

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