Impressões e expressões em Portugal
“Fixe.”
O que foi que ela disse? “Vixe”? O que foi que eu fiz de errado? Não, esperem, não é assim que eu pretendia começar este texto. Era assim: “O piloto anunciou que já estávamos sobrevoando Portugal.” Sim, era assim.
O piloto anunciou que já estávamos sobrevoando Portugal. Tirei do bornal sob o assento da frente o livro de Herberto Helder. O corpo o luxo a obra. Uma edição brasileira, seleção de seus poemas, na qual está o longo poema que dá título à antologia, que diz: “Quando / as veias dos mortos fazem um nó furioso / com as minhas veias, / a voz / costura-se com as linhas de sangue / da sua fala.” No avião, tudo era falado em português, então em inglês, por fim, em alemão. As três línguas que uso diariamente. Ou que me usam?
Começa a descida, o piloto pede a todos que afivelem os cintos, ergam a mesa, desliguem os aparelhos eletrônicos. Passo a ler aquele poema-mantra de Helder, “Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.” O sol sobre Lisboa, aquela luz que chega a cegar quem vem já do outono em Berlim, onde o céu nublado permanecerá cinza até meados de março. Quando o avião levantou voo na capital alemã, entramos nas nuvens que cobrem a cidade, o avião chacoalha, a tensão do clima, e logo ultrapassa as nuvens e vê-se o azul ainda lá, cobrindo Berlim, escondido. Mas, em Lisboa, o sol, a luz sem esconderijos. A língua que chega: “As casas são fabulosas, quando digo: / casas. São fabulosas / as mulheres, se comovido digo: as mulheres”, e me pergunto se todos percebem a importância do dizer comovido.
Que experiência, esse estranhar e esse reconhecer ao mesmo tempo. Portugal, Brasil. Estar em um país estrangeiro e falar sua língua. Nós, lusófonos, separados pelo mar, por terra, sem jamais fazer fronteira com outro território lusófono. Que bonito estar em um país homolíngue. Inventei a palavra? Não tenho certeza. Homolíngue, de mesma fala. Heterolíngue, de fala diferente.
No aeroporto, pergunto a uma portuguesa onde fica a área para fumantes. Ela não entende, e pergunta como quem corrige: “O sítio para fumadores?” Sim, o sítio para fumadores. Na tabacaria, falam comigo em inglês e digo como quem corrige: “Podem falar português comigo.” Minha editora portuguesa, Helena Vieira da Mariposa Azual, espera para me pegar, com sua filha Beatriz Nunes, cantora do Madredeus desde 2011. É uma alegria estar aqui. Seguimos para Loures, onde vive, e lá como o feijão e o lombinho de porco. Estranho, reconheço.
Seguimos mais tarde para Lisboa, até o Chiado. Passamos por livrarias independentes, deixamos cópias do meu livro Medir com as próprias mãos a febre, que acaba de ser editado aqui. Chiado, com as estátuas de Luís de Camões e Fernando Pessoa marcando ao menos dois dos pontos cardeais. Esses cafés! Esses pastéis de nata! Esses homens lindos nas ruas! É fixe. Fixe? Ora, o que é fixe? É o que vocês chamam de “legal”, de “maneiro”, diz-me Helena. De “mara”, atualizo-a. É fixe. É mara. É giro? E “giro” tem concordância? Sim, diz-se “giro”, “gira”.
Às sete da noite, seguimos para o Bar Irreal, na Rua do Poço dos Negros. Há leitura do poeta António Poppe. Mas chamar de leitura o que fez não faz jus ao que fez. É outra visão da poesia, xamânica, ele fala, fala, entrelaça sem pausa os poemas na fala, repete versos, guia-nos a algo. Ao quê? A algo real.
Lá, conheço pessoalmente a poeta Margarida Vale de Gato. E Catarina Santiago Costa. E Marta Raquel Fonseca. Lá, reencontro Alexandra Lucas Coelho, minha amiga, uma das prosadoras da língua que mais admiro hoje. Ela lerá na apresentação do meu livro. Logo, ela me pega pela mão e diz: “Vem cá, quero te apresentar alguém.” Era Olga, a viúva de Herberto Helder, ali na leitura de António Poppe. Beijo sua mão, sento-me, começamos a conversar sobre Brasil, Portugal e Angola, de onde ela vem. Da admiração de Helder por poetas brasileiros, da resistência, por vezes, de editores portugueses em publicar brasileiros. Falamos das novelas, das canções. De tudo o que nos une.
Ao fim, sigo com Helena Vieira e Leonel Guerreiro, mais a artista Marta Bernardes, a comer açorda e polvo, ambos à alentejana. Marta e eu conversamos longamente sobre o candomblé, sobre a influência do iorubá e o bantu sobre o português brasileiro. Falo sobre o perspectivismo ameríndio. Ficamos admirando a beleza da palavra “azeitona”, e eu falo do meu poema “Tolo de ouro”, que começou por causa do meu amor por azeitona, a coisa e a palavra: “Açoitem-me com azeitonas, moços”.
Um brinde!
— A Brasil e Portugal…
— Não! Não, espere… a ALGUNS brasileiros…
— Tchim, tchim!
— ALGUNS portugueses…
— Tchim, tchim!
— ALGUNS angolanos…
— Tchim, tchim!
— ALGUNS moçambicanos…
— Tchim, tchim!
— ALGUNS cabo-verdianos…
— Tchim, tchim!
Na manhã seguinte, falamos sobre Fernando Pessoa e seu slogan para a Coca-Cola, “Primeiro, estranha-se, depois, entranha-se”, que levou a bebida a ser proibida em Portugal até 1974. Falamos de Salazar. Falamos de Vargas. Ouvimos canções de José Afonso, como seu “Os eunucos”, e tenho calafrios com os versos “E quando os mais são feitos em torresmos / Não matam os tiranos, pedem mais”, e dizemos “É Portugal e é o Brasil, hoje.”
Logo mais, conto com Miguel Martins a apresentar meu livro, e os amigos Alexandra Lucas Coelho, Matilde Campilho e Ederval Fernandes lendo meus poemas no lançamento. Conheço o jovem poeta sonoro português Daniel Monteiro, que encerra a noite com uma performance.
Pronto para encerrar o texto, ouço Helena Vieira (sobrenome auspicioso para as relações Brasil-Portugal) dizer ao telefone, “O Chiado é o mundo”, e murmuro sozinho: “O sertão também.”
Sudeste
Céu nublado sobre os montes de Minas Gerais, os mesmos outeiros cantados por Claúdio Manuel da Costa. Que luz leitosa é essa que torna marrom minha roupa preta? Coníferas com ar de perdidas interpõem-se entre embaúbas, eucaliptos, coqueiros. Estamos no Sudeste, lugar nenhum para ornitólogo amador. De fauna, sinal nenhum. Nasci na terra dos paulistas sem metafísica, cuja capital é uma sarna que se espraia. Não, se deserta. O ônibus em que sacolejo partiu da antiga capital do Império e da Primeira República. Na capela imperial, quieta no alto do outeiro da Glória, infante principesco nenhum há-de ser batizado, nem estará correndo agora algum tupinambá por entre as árvores da Floresta da Tijuca.
No assento ao lado, cadiuéus e bororos hibernam entre as páginas de Claude Lévi-Strauss. Sei que em breve deixaremos estes restos persistentes de Mata Atlântica e veremos os primeiros sinais de transição para o cerrado. Se ao menos um sabiá cantasse, piasse alto um canário-da-terra. Ninguém há-de me receber em meu destino com um bem-te-vi. O capital expropria pássaros, plantas e sagrações. Dos antigos rituais de iniciação da puberdade, não restam sequer os bailes de debutante.
Não há animais. Nada é silvestre. Apenas estes domésticos importados no calor, vacas prostradas, cavalos prostrados, cães e gatos prostrados. Pelos bueiros, por certo estarão prostrados também os ratos, as ratazanas. Estes são os estados da minha região dentro da União. Mas, nessa terra nossa, união mesmo só a dos cupins, eles próprios atarefados em explorar a madeira do território. O único brasileiro admirável é o joão-de-barro. O guesa em Wall Street já demonstrara: ao fim das nossas negociatas, não nos restará sequer língua articulada, apenas um balbuciar incoeso, um “Mahmmuhmmah, mahmmuhmmah, Mammon”.
A guerra é eterna e não há centímetro de terra neste solo que não se tenha aguado com sangue, adubado com carne humana das mais diversas cores. Na estrada que se desenrola, o capim bordeja tudo. Vejo o primeiro pássaro: um urubu. De uma das espécies animais mais volumosas do território, vem do rádio um rugir que se entende por “algo bom é algo morto”. Mas a espécie deveras populosa do país está calma, quieta, cortando folhas e carregando-as para dentro de suas casas comunitárias.
Pudesse, diria a Minas Gerais que se cuidasse. Que ouvisse a palavra deste paulista que viu morrerem festas de santos e de reis, cujos tataravós um dia falaram a língua geral, não este português com que ora tento malemá admoestar compatriotas imaginários. Nem seria preciso ouvir a mim. Poetas ela tem de sobra, ainda que os desperdice a cada geração, o que ademais fazemos todos nós, brasileiros, tão bem. De resto, a seca nunca respeitou fronteiras, a fome não conhece mapas, apenas estatísticas.
Será um carcará, aquilo ali, que voa agora? Flore, ipê, flore. É setembro. E infeccioso o teu otimismo.
(Escrito no início de setembro, em um ônibus entre o Rio de Janeiro e Tiradentes)
Relato de uma viagem à Ucrânia (última parte)
É enorme a Ucrânia. Mesmo para um brasileiro, acostumado às distâncias entre cidades e estados em nosso país, assombra-nos um pouco a Ucrânia após uma década na Europa, onde viagens de cinco ou seis horas em geral implicam o cruzamento de fronteiras, a troca de línguas. Mas então lembramo-nos que a Ucrânia é um país de geografia conturbada, naquelas mudanças que a História consegue impingir à terra. Isso fica claro após visitar quatro cidades no país: Kiev, Kharkiv, Chernivtsi e Lviv, que já foram cidades de vários países sem ter-se movido de seus rios e planícies. A terra do velho rei Oleg. Tornada cristã por Vladimir, o Grande (980–1015). Dos belos signos círilicos, apertada entre impérios como uma família entre vizinhos entrões.
Kharkiv, a segunda maior do país, deixa claro em sua arquitetura sua proximidade da Rússia. Pareceu-me uma cidade brutal, com sua arquitetura soviética, após a destruição pela qual passou durante a Segunda Guerra. Já foi parte do Império Russo. O censo de 1989 demonstrava uma população equilibrada entre ucranianos (50%) e russos (43%), as minorias sendo formadas por judeus e bielorrussos. Foi uma cidade importante para a vanguarda ucraniana, centro daquela que ficou conhecida como “Renascença abortada”, ou “executada”, pois inúmeros escritores, teatrólogos e artistas, como Les Kurbas, Mykola Khvylovy e Valerian Pidmohylny pereceriam durante os expurgos estalinistas. Foi em Kharkiv que ocorreu o massacre de Katyn, quando inúmeros intelectuais poloneses e oficiais do Exército polonês foram executados por ordens soviéticas. É hoje a cidade onde mora um dos mais conhecidos e importantes poetas contemporâneos do país, Serhiy Zhadan, nascido em 1974. Ali conheci o tradutor Serge Lunin, que fala em plena Ucrânia um belo português de Portugal. Com ele caminhei pela cidade, visitei algumas igrejas. A proximidade com a Rússia havia me deixado nervoso na hora de ler meus poemas com o teor que têm. Mas a experiência foi mais uma vez a mesma: quando nos abrimos com certo candor e confiança, é frequente que te estendam a mão.
A viagem para Chernivtsi (Czernowitz), onde a maior parte do festival ocorreria, foi de trem, um trem noturno. Em minha cabine, a poeta Iryna Tsilyk. Casada com um romancista ucraniano, seu marido estava no front, em Dombass. Ali, naquele trem antigo, do período soviético, numa cabine com uma poeta que esperava pelo marido, romancista, voltar inteiro da guerra, não sabia por vezes se estava ainda no século 21. Mas era justamente onde e quando estava, no século 21, e guerras só nos assustam ou espantam como anacrônicas a nós, privilegiados de uma Europa que há séculos se crê mais mundo de Oz que mapa de crateras. A guerra não é estranha para estes povos ao leste, que têm presenciado os maiores massacres do continente nas últimas décadas. De Sarajevo a Donetsk, até quando? A poeta Kateryna Babkina me informou que eu poderia fumar se ficasse na área onde os vagões se engatam, separada do exterior por uma parede de borracha, e permaneci ali algum tempo, escrevendo e conversando com uma horda de jovens que vinham do leste para um festival de música próximo à cidade de Ivano-Frankivsk. Ali conheci um beatboxer, chamado Alex, que insistiu em improvisar comigo enquanto eu vocalizava um dos meus textos. Nascido em Starobilsk, cidade próxima de Lugansk e que pode ser tomada pelo conflito, ele estava a caminho de um festival de música. Senti-me tomado por uma solidariedade e compaixão estranhas por aquele estranho. Pode ter que ir à guerra a qualquer momento, mas enquanto isso não acontecia, lá estava ele sorrindo, fazendo música, a caminho de um festival. Como no poema de Hilda Hilst, pensava “(n)esses que vão morrer. / Iguais a mim também”.
Em Chernivtsi, a Czernowitz natal de Paul Celan, percebe-se imediatamente estar em território do antigo Império Austro-Húngaro. É belíssima a cidade. Poupada pela guerra, não transparece ter sido palco de massacres pelos nazistas. Ali nasceu Paul Celan, ali foram presos seus pais, que morreriam em campos de concentração. A antiga sinagoga é hoje um cinema. Em cartaz, filmes de ação norte-americanos. O prédio da Universidade onde ocorre a abertura do festival é tombado pela Unesco. A cidade toda parece parada num tempo, em paz, tranquila. Os versos de Celan, que traduzi, me vêm à mente:
Leite negro da madrugada que bebemos à tardinha
nós bebemos ao meio-dia e de manhã nós bebemos à noite
nós bebemos e bebemos
cavamos uma cova nos ares onde possamos espreguiçar-nos
Certo homem habita a casa e brinca com víboras que escreve
que escreve quando escurece à Alemanha teu cabelo doirado Margarete
No festival, a poeta Iryna Tsilyk lê um poema seu dedicado ao marido, descrevendo um de seus retornos da guerra, enquanto ela lava seu uniforme, os lençóis onde ele mais tarde a tomará nos braços, tocará seus seios. Ouvindo a tradução do poema para o alemão, não sei julgar se o poema sobreviverá ao tempo. Tudo o que queremos é que seu marido sobreviva, ela sobreviva, seu filho de cinco anos. Fico bastante emocionado com o poema. A paz aparente de Czernowitz parte-se, todos se lembram da guerra. A guerra, ela mesma em aparente calma ao leste.
Minha última cidade na Ucrânia é Lviv, a cidade natal do polonês Zbigniew Herbert, a própria cidade tendo sido um dia polonesa. Num país em guerra, penso no grande poema de Herbert, “Crônica de uma cidade sitiada”:
Segunda-feira: as lojas estão vazias o rato converteu-se em unidade monetária
Terça-feira: o presidente da câmara foi assassinado por desconhecidos
Quarta-feira: rumores de armistício o inimigo pôs a ferros os nossos enviados
não sabemos onde eles os têm presos isto é onde os mataram
Quinta-feira: após uma assembleia tempestuosa a maioria votou contra
a proposta de rendição incondicional apresentada pelos mercadores
Sexta-feira: a investida da peste Sábado: suicidou-se N. N.
o valoroso guerreiro Domingo: não há água repelimos
o ataque até à porta oriental chamada a Porta da Aliança
eu sei que é monótono tudo isto não vai comover ninguém
(Zbigniew Herbert, excerto do poema “Crônica de uma cidade sitiada” em tradução de José Miguel Silva).
Na Estação Ferroviária de Lviv, onde pego um táxi para o aeroporto, vejo um jovem soldado, no rosto e nos ombros o peso do mundo, a marca de todas as desesperanças, sentado no chão, é provável, para economizar as 10 grívnias que haviam me cobrado mais cedo para sentar-me em uma das cadeiras da sala de espera. Quantos anos terá? Não pode ter mais que 21 anos, como tantos dos que encontrei na Ucrânia ao longo da viagem. Começo a escrever um poema sobre ele. Ele jamais saberá, nem mudará qualquer coisa em seu destino, mas quando o ler, em algum outro festival, será como uma oração por sua segurança na guerra. E me perguntarei, tenho certeza: “o que terá acontecido com o soldado da estação de Lviv?”
Relato de uma viagem à Ucrânia (segunda parte)
Soldados, por toda parte. Em nosso caminho, passamos pelo prédio imponente da Universidade que leva o nome do poeta nacional da Ucrânia, Taras Shevtchenko (1814-1861). Era o 1° de setembro, dia de retorno às aulas. As ruas apinhadas de jovens estudantes, belos, saudáveis, com sua rotina de estudos apesar do país em guerra. Ao chegar à Praça da Independência (Maidan Nezalezhnosti), Alexander Burlaka aponta para as pedras do calçamento, cimentadas uma vez mais após terem sido usadas como armas durante os protestos. Ao redor da praça, cartazes em honra dos soldados em Dombass, região no Leste do país onde ficam Donetsk e Lugansk, imersas no conflito entre rebeldes separatistas e forças militares ucranianas. A praça foi o palco dos protestos que levaram à queda do presidente Viktor Yanukovich. Foi também onde ocorreu o maior massacre e homicídio em massa da história da Europa neste século, com mais de 100 mortos. Na praça, vê-se ainda o prédio incendiado da União dos Sindicatos da Ucrânia (Budynok Profspilok), que vinha sendo usado pelos manifestantes como hospital improvisado. Ninguém sabe quem ateou fogo ao prédio. Apaga-se o fogo e conta-se o número de mortos. O ápice do confronto foi entre 18 e 20 de fevereiro de 2014, em especial na madrugada do dia 20, quando atiradores profissionais, do alto de prédios ao redor da praça, tiraram a vida de dezenas de manifestantes e alguns policiais. Até hoje, o caso segue envolto em mistério e teorias de conspiração. Ninguém foi identificado, preso ou julgado. As famílias aguardam em meio à hagiografia e à canonização de entes queridos que se seguem a tais crimes durante revoluções, tomando-os como mártires. Uma expressão que circula sobre os mortos é a “centena santa”, em referência ao número de mortos. Enquanto isso, mães e irmãos esperam que os culpados sejam responsabilizados.
Foi uma experiência forte estar ali. Imaginar que aquele lugar pacífico, uma praça celebratória, tingiu-se de sangue há apenas um ano. Caminhamos até o Mosteiro de São Miguel, com suas cúpulas douradas, no traçado feito pelos manifestantes em fuga do tiroteio. O mosteiro tornou-se um símbolo da revolução de Maidan, pois, na madrugada de 20 de fevereiro, quando os policiais atacaram os manifestantes às 4 da manhã, com prédios todos fechados devido ao horário, foi no mosteiro que muitos se refugiaram. As forças do governo sitiariam o terreno do complexo religioso até a renúncia e fuga do presidente. A igreja principal é belíssima. O mural de ícones ortodoxos toma conta da parede final da igreja. Senhoras com lenços cobrindo os cabelos apinham-se pelo prédio. Homens entram, beijam os ícones à frente do painel, tocam-lhes com a testa, e então limpam o vidro com flanela ali deixada para este fim. Como cidadão do maior país católico do mundo, é familiar e estranho estar naquele ambiente ortodoxo. O único caminho que nos liga é o barroco do prédio, do mistério. Mas o mistério católico e o mistério ortodoxo mostram suas faces escondidas ali também. A diferença da arquitetura, da organização do prédio. Aquele painel coberto de rostos canônicos implicando uma presença oculta por trás, inacessível.
No torre do mosteiro, vê-se o rio Deniépre cortando a cidade em zona leste e oeste. É enorme Kiev, espraia-se à distância. É muito bonita. Aquela sensação de estar toda ela entre leste e oeste. No meio-fronteira entre as zonas de influência política e militar do Império Austro-Húngaro e do Império Russo. Estes impérios dominando partes de seu território, possuindo-os em rodízio.
Caminhei muito naquela tarde, com Alexander Burlaka apontando os prédios, as vistas. Ao meio-dia, dirigimo-nos para a Estação Ferroviária Central, onde eu encontraria os organizadores do festival, Evgenija Lopata e Slava Pomerantsev, assim como os escritores ucranianos Oksana Zabuzhko, Kateryna Babkina e Dmytro Lazutkin para a viagem de trem a Carcóvia (Kharkiv), onde ocorreriam as primeiras leituras. Entre eles, também a excelente poeta russa Elena Fanailova. Na cafeteria da estação, comprei mais daquela boa e baratíssima comida ucraniana para o privilegiado com euros no bolso. À minha frente, na fila, soldados pediam vodca. A cena causava desconforto. Mais tarde, em conversas com escritores do país, eles relatariam como o alcoolismo vem se tornando um problema sério entre os soldados no front, desde o segundo acordo de Minsk, de 11 de fevereiro de 2015, que visa retomar o fracassado cessar-fogo do Protocolo de Minsk assinado em 5 de setembro de 2014. Retornarei a isso na terceira e última parte deste artigo.
No centro da estação, um lindo soldado jovem, que não poderia ter mais de 20 anos de idade, segurava uma caixa e pedia apoio financeiro para a guerra, que vem quebrando país. Organizados e agrupados os poetas, tomamos o trem para Carcóvia. São cinco horas de viagem. Em uma parada de cerca de 50 segundos na estação de Poltava, cidade natal de Nicolai Gogol, o editor Slava Pomerantsev, a escritora Oksana Zabuzhko (considerada hoje a mais importante do país) e eu descemos, às pressas, para dar três ou quatro tragos em um cigarro. De pé na estação, enquanto Zabuzhko me falava sobre Gogol, Pomerantsev quis fazer uma piada e me perguntou se estava com meu passaporte, caso o trem me deixasse para trás. Ele disse que, se me pegassem ali sem passaporte, me enviariam direto para o front em Dombass. Sorri amarelo, nervoso. Pensei na expressão gallows humor. Em meio à guerra e ao desastre econômico, as pessoas usam as armas milenares, estou certo disso, do humor, da ironia e do sarcasmo em meio à sandice.
(continua)
Relato de uma viagem à Ucrânia (1. Kiev)
Cheguei à Ucrânia em um voo vindo de Istambul na noite de 31 de agosto. Estou no país para participar, nos próximos dias, do festival Meridian Czernowitz, que tem sua base na cidade natal de Paul Celan e toma seu nome de um texto em prosa do poeta. Naquele dia, protestos diante do Parlamento por causa de uma emenda na Constituição, visando maior descentralização do Governo, acabaram em sangue. Uma granada lançada contra os policiais que protegiam o prédio deixara um morto já naquela noite. Desde então, o número de mortos subiu para três.
É minha primeira vez no país e estou aqui há apenas três dias. Não falo ucraniano ou russo, e dependo de meus anfitriões para quase tudo. Portanto, não é fácil escrever, nestas condições, sobre a situação em um país. Esta manhã, antes de iniciar este texto e após passar os últimos dias pensando sobre isso, vieram-me à mente algumas cartas de Elizabeth Bishop, escritas no Brasil para amigos nos Estados Unidos, como Robert Lowell, nas quais ela demonstra despreparo para compreender o país mesmo após anos vivendo nele. Tom Jobim escreveu que “o Brasil não é para principiantes”, e mesmo após duas décadas no país, Bishop não parece ter-se alçado muito acima deste estado, o de principiante. Apesar de alguns poemas bastante sensíveis, como “The pink dog”, sua visão do país não me parece ter jamais ido muito além do filtro que lhe davam os olhos Lota de Macedo Soares, artista que admiro, mas uma mulher com posições políticas bastante questionáveis. “Ideologia da percepção”, como escrevi em um ensaio há quase dez anos. Por isso, é com responsabilidade, cuidado e preocupação que anoto estas impressões da Ucrânia, baseado no que tenho ouvido de escritores aqui, mas também de amigos ucranianos nos últimos dois anos, desde que os conflitos começaram na Maidan Nezalezhnosti, ou Praça da Independência, em Kiev.
Naquela noite, fui ao supermercado com Evgenia Lopata, a organizadora e minha anfitriã, para comprarmos comida para as próximas horas, antes de partirmos para Carcóvia (Khakiv, no Leste do país), onde ocorreriam as primeiras leituras. A primeira coisa que um residente da Europa Ocidental percebe, neste caso, é o quanto a situação financeira do país parece estar em frangalhos. Um euro vale cerca de 25 grívnias (a moeda ucraniana). Desde então, continuo a me chocar com a desvalorização da moeda. Pergunto cerca de três vezes se estou ouvindo bem, sempre que me dizem o quanto acabei de gastar após comer uma refeição. Um exemplo: ontem, após tomar um café, comer dois hambúrgueres e um pedaço de bolo, gastei 35 grívnias, pouco mais de um euro. Mas, o que você me diria se eu informasse que o salário mínimo mensal no país está em cerca de 55 euros?
Na manhã seguinte, o fotógrafo amador Alexander Burlaka ofereceu-se para mostrar-me a cidade. Ele foi-me apresentado como Sasha, o apelido comum para Alexander, como o Chico de nossos Franciscos. Aos 21 anos, é já formado em economia, mas está desempregado. Extremamente gentil e conhecedor das ruas de Kiev, caminhamos do apartamento onde estava hospedado até a Praça da Independência, desta ao Mosteiro de São Miguel com suas cúpulas douradas e a um parque elevado de onde se pode ver o rio Deniépre (Dnipro). O rio nasce na região de Smolensk, cortando Rússia, Belarus e Ucrânia antes de desaguar no mar Negro. O rio define o que é oeste e leste na Ucrânia, e foi a linha que sempre dividiu o país entre suas guerras com a Rússia a leste e a Polônia a oeste.
É minha primeira vez em um país oficialmente em guerra. Enfatizo o “oficialmente”, pois brasileiros (e mexicanos, país onde já estive algumas vezes) vivem em estado de guerra de atrito civil há séculos. No entanto, caminhando pelas ruas de Kiev, não se pensaria que os mortos acumulam-se no leste. A cidade parece pacífica. As ruas estão limpas, mais limpas que nas afluentes cidades da Europa Ocidental. Não fossem os soldados, inúmeros soldados por todos os lados, seria fácil esquecer a guerra. E talvez um dos aspectos mais perturbadores desde que cheguei seja justamente a maneira como os ucranianos a oeste do conflito parecem querer justamente isso: esquecer a guerra. Falar sobre outra coisa, por favor, outra coisa. Poesia, o clima, os problemas de outros países, mas não a guerra. A reação é extremamente humana, mas não deixa de perturbar, quando se pensa na situação em Donetsk e Lugansk.
(continua)
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