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Carta em Istambul a William Zeytounlian

0,,17195112_101,00Meu caro irmão pequeno, como diz Mário de Andrade naquele seu rito a Manuel Bandeira – “E quando a fadiga enfim nos livrar da aventura, / Irmão pequeno, estaremos tão simples, tão primários, / Que os nossos pensamentos serão vastos. / Graves e naturais, feito o rolar das águas” –, várias coisas eu quis dizer a você hoje, com quem me entendo por certo melhor do que com os que comigo compartem sangue, então venho por meio desta agora confessar que, ao sobrevoar e pousar em Istambul, era preso a você que ia meu pensamento, na mesma estranheza que geraria talvez um estrangeiro sobrevoando e pousando em Berlim com o pensamento firme e fixo em um amigo judeu, mesmo que nascido em São Paulo, Buenos Aires ou Nova York; e se me peguei chamando de Constantinopla a cidade, não foi por compartilhar com gregos nacionalistas de sua Megali Idea, sonhando reavivar um Império Bizantino e pan-helênico; muito menos por desejar insulto às tantas famílias muçulmanas há séculos chamando de lar este rincão de terra; tampouco por qualquer romantismo cafona de poeta apaixonado por outros poetas como Kaváfis, que era, de qualquer modo, natural de outra cidade grega tomada, Alexandria; mas pensando em você, jovem poeta e quiçá ateu paulistano, nascido no seio da diáspora daquele povo tradicionalmente chamado de os mais antigos cristãos da Europa, senti um peso e medo estranho, como se a qualquer momento uma reviravolta no tecido do tempo e do espaço pudesse colocá-lo em risco de morte nesta terra onde tantos de seu povo e mesmo de sua família foram mortos, como se o passado pudesse retornar e nos capturar a todos, como tantas vezes o faz, passado que sequer possui reconhecimento oficial nos livros de História deste país.

Mas por que precisaríamos de uma reviravolta no tecido do tempo e do espaço, se neste exato tempo e espaço tantos outros encontram-se ainda em perigo, logo além da fronteira ao norte. São talvez outros possíveis irmãos pequenos que jamais conheceremos, e que no entanto talvez pudessem perambular conosco um dia pelas ruas de São Paulo, ou Berlim, ou Istambul, ou Erevã, ou Arbil, discutindo nossos poetas preferidos, fossem brasileiros, alemães, turcos, armênios ou curdos. Nem sequer tenho realmente os pés oficialmente no país, estou em trânsito apenas, cercado por paredes de vidro neste aeroporto internacional Atatürk de Istambul, vidro que porém permite-me ver, de um lado, os minaretes das mesquitas que se erguem à distância na cidade, e do outro a água azulíssima do mar de Mármara. Não podendo deixar as dependências do aeroporto, à espera do voo que me levará a meu destino final em outra terra em conflito, na cidade de Kiev, murmuro entre os dentes o nome de Hagia Sophia, e esse nome espeta o céu como os minaretes que ora a decoram, e a sabedoria é justamente o que sempre nos faltou na Terra, me levando a pensar nesta basílica-mesquita como um símbolo dos malentendidos milenares entre cristãos e muçulmanos. Monoteístas jamais entenderão talvez nossa convivência e comoriência inevitáveis. Houvesse Abraão ficado em Ur, teríamos paz? Ou seriam outros os deuses comandando-nos à guerra e à matança? Nos corredores do aeroporto, os rostos cobertos de peles das quais emanam as refrações de luz mais diversas que já vi num aglomerado de gente, gente, gente que não acaba, e me lembro que sim, esta faixa de terra foi um dia a ponte que levou os primeiros povos a sair da África em direção à Europa e à Ásia, obedecendo a um deus de nome esquecido talvez, que ordenava: “Crescei, multiplicai-vos e colonizai-vos uns aos outros”. E talvez mais importante que Hagia Sophia, a basílica-mesquita, em um ponto deste mesmo país está Göbekli Tepe, ou o “Monte com umbigo”, que arqueólogos hoje creem ser o mais antigo templo já encontrado, anterior a nossos abraâmicos, nossos monoteístas. Por Deus! Anterior mesmo a nossa descoberta da agricultura.

E dizem que nas culturas neolíticas da antiga Anatólia, os mortos eram deliberadamente expostos aos abutres e só depois enterrados, e a cabeça, removida e guardada como lembrança dentro de casa, culto aos ancestrais. O quanto mudamos, realmente? Alguma Antígona hoje ergue a voz contra os que estão expostos a abutres nas cenas de guerra infindável mundo afora? Cá estou eu, em trânsito, a caminho de outra terra onde gente de fala distinta se digladia pelo controle da terra e de si. Estamos todos em trânsito, estamos todos em guerra. Com o sangue cabloco de minha mãe e o sangue catalão de meu pai, penso como somos todos filhos de povos subjugados, querendo ter capitais e línguas oficiais, e esta é apenas uma carta escrita em um aeroporto, deste seu irmão caboclo-catalão ao irmão pequeno, armênio-paulistano. E retorno ao “Rito do Irmão Pequeno” de Mário de Andrade a Manuel Bandeira para deixar que poeta melhor que eu encerre por mim esta carta: “Vamos caçar cotia, irmão pequeno, / Que teremos boas horas sem razão. / Já o vento soluçou na arapuca do mato / E o arco-da-velha já engoliu as virgens. // Não falarei uma palavra e você estará mudo / Enxergando na ceva a Europa trabalhar; / E o silêncio que traz a malícia do mato, / Completará o folhiço, erguendo as abusões”.

Istambul, 31 de agosto de 2015

Data

terça-feira 01.09.2015 | 05:53

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