O Brasil profundo e os outros Brasis – a morte de Ariano Suassuna
Acabo de encerrar e enviar um artigo sobre Suassuna para o caderno de cultura da Deutsche Welle, mas gostaria de retomar alguns pontos aqui, de cunho mais pessoal, que ficariam deslocados no artigo ligeiramente mais sóbrio para o jornal.
Meu primeiro contato com Suassuna foi através de suas polêmicas de cunho nacionalista. Eram meados da década de 90 e eu, tendo retornado dos meus estudos nos Estados Unidos um tanto inflamado em meu nacionalismo, estava fascinado com o trabalho de Chico Science & Nação Zumbi. O que me fascinava, no entanto, não eram tanto as guitarras quanto os tambores, menos o rock que o maracatu. Graças a Chico Science, descobríamos elementos da cultura pernambucana e do Nordeste novamente no sul. Os ataques de Suassuna ao Manguebeat me incomodavam, porque eu via no movimento seus aspectos de brasilidade e modernidade, como no Tropicalismo. A sensação era de que certas pesquisas estéticas abortadas pelo advento da Ditadura Militar talvez estivessem aos poucos sendo retomadas com a redemocratização do país. Naquele momento, portanto, Ariano Suassuna me parecia uma figura menos arcaica que arcaizante. Alguém que, apesar de seus méritos, afundava em sua própria intransigência. Eu era muito jovem e caía no mesmo discurso dualista que imperava na imprensa e nas polêmicas.
Então veio a morte trágica de Chico Science em 1997, e muito se comentou à época sobre Ariano Suassuna no velório, desconsolado, chorando a morte do jovem. Para alguns, parecia haver um tom de vingança na forma como comentavam sobre isso. Para mim, aquilo serviu como uma lição: as coisas por aqui são muito mais complicadas e complexas do que aparentam ser.
Que Pernambuco comportasse naquela década uma figura como Ariano Suassuna e outra como Chico Science, apesar das óbvias diferenças geracionais e aparentes diferenças estéticas, era uma demonstração de pujança na cultura do estado, da região e do país. Não se precisa parar por aí. Basta pensarmos que Ariano Suassuna, nascido na Paraíba em 1927, era contemporâneo exato de Décio Pignatari, nascido em São Paulo no mesmo ano. Figuras emblemáticas de aspectos distintos do Brasil, ainda que Suassuna talvez os visse como manifestações de facções opostas, o rural e o urbano. A visão estética e política de Suassuna não pode ser do retirada facilmente dos embates políticos do seu tempo, em especial os que circundaram o Golpe de 1930.
Ariano Suassuna era, não se pode esquecer, um membro da elite do Nordeste. Da mesma elite que deu ao Brasil figuras como Manuel Bandeira, Gilberto Freyre e João Cabral de Melo Neto. Suas referências à grande família por vezes me incomodavam mais que suas declarações estéticas. Como neto de caboclos pobres do interior paulista e imigrantes analfabetos da Catalunha e Calábria, minha reação a isso era a mesma que tinha a certas falas dos quatrocentões paulistanos. Mas Suassuna tinha consciência disso. Em sua entrevista ao programa Roda Viva em 2012, é muito comovedor quando relata o momento em que percebeu que, na sua mítica batalha imaginada entre as forças rurais de seu pai, João Suassuna, e as forças urbanas de João Pessoa, mais uma vez desenrolava-se no Brasil o embate entre elites, entre as forcas abastadas de um lado e as forças abastadas do outro. Foi com Euclides da Cunha e Os Sertões que ele percebeu o grande embate real, entre o Sertão do interior e o Sertão da rua do Ouvidor. Entre uma elite e o resto do país, que não se entendem. Homens como Suassuna, Cabral, Bandeira e Freyre poderiam facilmente ter seguido carreiras políticas, de comando, algo destinado aos filhos das elites. Que tenham escolhido a poesia, o teatro, a literatura demonstra o quanto perceberam os verdadeiros embates do país, e suas obras deixam claro de que lado queriam lutar.
Rejeitar por completo o projeto estético de Ariano Suassuna é cair na mesma armadilha retórica do “quem não está comigo, está contra mim” que tanto se critica nele. E demonstra o quanto o debate estético por vezes se assemelha ao debate político, não por filiações patidárias dos artistas, mas na sua estrutura intrínseca, denotando o mesmo anseio por hegemonia.
Pensando hoje em Suassuna e Science, percebo que o que sempre me atraiu em Ariano foi sua mestiçagem de linguagens, sua modernidade. Como escrevi no artigo para a Deutsche Welle, o Romance d´A Pedra do Reino é uma das últimas grandes obras do modernismo brasileiro, com sua mescla de gêneros, seu uso de formas da literatura medieval das línguas latinas, sua narratividade fincada na tradição oral ibérica e brasileira.
Nestes aspectos, ele se liga tanto ao Mário de Andrade e seu uso da rapsódia em Macunaíma (1928) como a João Guimarães Rosa e seu uso da canção de gesta em Grande Sertão: Veredas (1956). São textos ainda ligados a um anseio épico no sentido de criação de mitos fundacionais para o país. Por sua vez, em Science o que me fascinava era o arcaico. Menos as guitarras que os tambores, como já disse no início deste texto. Foram estes elementos tradicionais que impediram que Chico Science fosse apenas mais um pseudo-roqueiro como os que há às pencas pelo país.
Quando penso em todos estes artistas: Ariano Suassuna, Mário de Andrade, Caetano Veloso, Glauber Rocha ou Chico Science, vejo muito mais o que os une que o que os separa. Em todos, uns mais conscientes que outros, parecia queimar certo fogo sebastianista. Ainda assim, suas diferenças, mesmo suas polêmicas, deveriam ser benvindas, se passássemos a ver as relações culturais do país mais como ecossistema do que selva – com sua lei do mais forte, ou do que grita mais alto.