As mortes, e a de Nicolau Sevcenko
Há pouco tempo, conversando com um estranho que me perguntara o que eu fazia, respondi com uma piada triste: “Trabalho na seção de obituários de um jornal.” O rapaz sorriu amarelo, parecendo acreditar, e provavelmente pensando: “Que trabalhinho triste.” Estava com um humor do cão de rua naquela noite, havia escrito nas últimas semanas basicamente textos ocasionados por mortes, a de João Ubaldo Ribeiro, a de Ariano Suassuna, e, por fim, a do meu próprio pai no primeiro dia de agosto, mês de desgosto. Com as novas adições à lista de mortos de 2014, este ano bizarro, tem se tornado difícil não começar a semana com a pergunta: “Quem será o próximo? Serei eu?”
Foi com esta pergunta na cabeça que liguei o computador, para ter respondida a pergunta, logo de cara, com a notícia da morte do historiador Nicolau Sevcenko (1952 – 2014). Se a morte chegada na casa dos 80 não pode nos surpreender demais, perder um homem da importância de Sevcenko com apenas 61 anos de idade é um choque verdadeiro.
Filho de russos da Ucrânia que se exilaram no Brasil por seu avô ter lutado ao lado do Exército Branco contra os bolcheviques durante a Guerra Civil Russa, a primeira língua de Sevcenko foi o russo. Ele conta em uma entrevista à Revista de História, em 2006, que ao ser mandado para a escola, no Brasil onde nasceu, não entendeu nada. Ao reclamar para os pais que eles o haviam mandado para uma escola de estrangeiros, a mãe retrucou: “Os estrangeiros somos nós.” Segundo ele, sua família acreditava poder um dia voltar à Rússia, e não terminava de se fixar devidamente no novo país.
Ainda está por ser discutida mais amplamente a influência das novas ondas migratórias do século 20 sobre a literatura brasileira, com a chegada dos Lispector, Leminski e Hilst, junto dos Sevcenko, a uma cultura que vinha marcada cultural e linguisticamente pela ascendência lusófona dos Andrade e Guimarães.
A primeira vez que ouvi falar de Sevcenko deve ter sido entre 1998 e 1999, meus anos na Faculdade de Filosofia da USP. Tomando todas as minhas matérias optativas na Faculdade de Letras, comentava com uma amiga sobre minha decepção com o nível das aulas e do interesse dos alunos, ali, por literatura. Sua resposta foi: “Você precisa tentar fazer alguma aula do Nicolau Sevcenko na Faculdade de História.” Isso acabou não acontecendo, tendo abandonado o curso após dois anos para vir para a Alemanha. O que houve foi a leitura de seus textos, admirando sua capacidade de conjugar áreas cada vez mais separadas nestes tempos de especializações. Duas das grandes contribuições de Nicolau Sevcenko a uma junção inteligente dos pensamentos histórico, político e literário brasileiros estão nos seus livros Literatura como Missão (1983) e Orfeu Extático na Metrópole (1992).
Escrito como tese de doutorado durante a Ditadura Militar (1964 – 1985), Sevcenko parte em Literatura como Missão da escrita de Euclides da Cunha e Lima Barreto para contemplar a história política e das ideias do início do século 20. Num momento de embates políticos duais, entre direita e esquerda, resistência ou adesão ao ideário militar-desenvolvimentista do regime, a escolha de olhar para a realidade por meio da ficção não deixou de causar polêmica. No entanto, com homens como Sérgio Buarque de Holanda e Boris Schnaidermann na banca, Nicolau Sevcenko não apenas convenceu como gerou repercussão e admiração pela ousadia. Na entrevista já citada, ele comenta:
“Acho que a razão pela qual o livro teve uma repercussão tão grande e tão imediata foi a necessidade, naquele momento da abertura, de o país ter um projeto de futuro, que de alguma forma trouxesse consigo, como ideia dominante, a do resgate da dívida social brasileira. Era essa a questão que a ditadura tinha tirado de circulação. Ela colocou a questão do desenvolvimento a qualquer custo, da integração do país ao mercado internacional independente das condições específicas características da sociedade brasileira – a última grande sociedade escravocrata do mundo ocidental. Um erro. A dimensão da divida social brasileira é tão exponencial que ela tem de ser pleiteada em qualquer projeto político.”
Meu interesse pessoal pelo trabalho de Sevcenko vem também, especial e justamente por minha admiração pelos intelectuais brasileiros do final do século 19, a chamada geração de 1870, passando por Machado de Assis, Joaquim Nabuco e Capistrano de Abreu, os primeiros autores a lidarem com os dilemas políticos da transição entre o Império e a República, cujos projetos alimentariam as ideias e obras de Euclides da Cunha e Lima Barreto, sobre os quais Nicolau Sevcenko debruça-se admirável e admiradamente em seu livro mais conhecido, Literatura como Missão.
Numa visão ampla de uma geração ativa especificamente nas duas últimas décadas do século 19, podemos pensar ainda nos embates com estas questões por autores como Joaquim de Sousândrade, Raul Pompeia e Cruz e Sousa, que expuseram cada um à sua maneira as mazelas e inviabilidades da sociedade brasileira para além da atitude por vezes ingenuamente celebratória do Grupo de 1922. A louca tentativa de inserção do Brasil em um sistema do capital internacional sem um pensamento detido sobre as características culturais específicas do país, a gigantesca dívida social cujo balanço é sempre postergado e a violência inerente da sociedade brasileira (racista e sexista, nascida de um genocídio), que vemos encarnar-se do “Inferno de Wall Street” a O Ateneu, passando pela “Litania dos pobres”, assim como em toda a obra de Machado de Assis, mestre de todos, chegando ao século 20 de Os Sertões e Triste Fim de Policarpo Quaresma.
É uma geração admirável, e é uma pena que certos preconceitos (imposturas típicas e talvez compreensíveis das chamadas fases heroicas de um movimento literário) herdados dos nossos modernistas ainda turvem nossa visão quando olhamos para nossos modernos. Considero a expressão “pré-modernismo” uma verdadeira aberração crítica.
Orfeu Extático na Metrópole retorna à São Paulo dos anos 1920, iniciando sua narrativa em 1919, para traçar através dos jornais da época o espírito reinante na cidade, numa releitura inteligente do movimento modernista, captando o espírito de desenraizamento de milhares de imigrantes, como a própria família do autor logo seria, imigrantes cujos filhos, em um par de décadas, começariam a transformar a cultura nacional.
O fato do nome de Nicolau Sevcenko não comparecer com mais frequência entre os nomes dos grandes críticos literários brasileiros dos últimos 30 anos talvez seja apenas outro sintoma da separação pseudo-especializada dos campos do conhecimento. Seu trabalho é a prova de que uma pluralidade de interesses não precisa levar ao mero diletantismo. Seu desaparecimento é outra perda debilitante para o pensamento no país. O que podemos fazer, e o que eu pretendo sem dúvida fazer nos próximos tempos, é retornar aos textos de Nicolau Sevcenko.