Relato de uma viagem à Ucrânia (segunda parte)
Soldados, por toda parte. Em nosso caminho, passamos pelo prédio imponente da Universidade que leva o nome do poeta nacional da Ucrânia, Taras Shevtchenko (1814-1861). Era o 1° de setembro, dia de retorno às aulas. As ruas apinhadas de jovens estudantes, belos, saudáveis, com sua rotina de estudos apesar do país em guerra. Ao chegar à Praça da Independência (Maidan Nezalezhnosti), Alexander Burlaka aponta para as pedras do calçamento, cimentadas uma vez mais após terem sido usadas como armas durante os protestos. Ao redor da praça, cartazes em honra dos soldados em Dombass, região no Leste do país onde ficam Donetsk e Lugansk, imersas no conflito entre rebeldes separatistas e forças militares ucranianas. A praça foi o palco dos protestos que levaram à queda do presidente Viktor Yanukovich. Foi também onde ocorreu o maior massacre e homicídio em massa da história da Europa neste século, com mais de 100 mortos. Na praça, vê-se ainda o prédio incendiado da União dos Sindicatos da Ucrânia (Budynok Profspilok), que vinha sendo usado pelos manifestantes como hospital improvisado. Ninguém sabe quem ateou fogo ao prédio. Apaga-se o fogo e conta-se o número de mortos. O ápice do confronto foi entre 18 e 20 de fevereiro de 2014, em especial na madrugada do dia 20, quando atiradores profissionais, do alto de prédios ao redor da praça, tiraram a vida de dezenas de manifestantes e alguns policiais. Até hoje, o caso segue envolto em mistério e teorias de conspiração. Ninguém foi identificado, preso ou julgado. As famílias aguardam em meio à hagiografia e à canonização de entes queridos que se seguem a tais crimes durante revoluções, tomando-os como mártires. Uma expressão que circula sobre os mortos é a “centena santa”, em referência ao número de mortos. Enquanto isso, mães e irmãos esperam que os culpados sejam responsabilizados.
Foi uma experiência forte estar ali. Imaginar que aquele lugar pacífico, uma praça celebratória, tingiu-se de sangue há apenas um ano. Caminhamos até o Mosteiro de São Miguel, com suas cúpulas douradas, no traçado feito pelos manifestantes em fuga do tiroteio. O mosteiro tornou-se um símbolo da revolução de Maidan, pois, na madrugada de 20 de fevereiro, quando os policiais atacaram os manifestantes às 4 da manhã, com prédios todos fechados devido ao horário, foi no mosteiro que muitos se refugiaram. As forças do governo sitiariam o terreno do complexo religioso até a renúncia e fuga do presidente. A igreja principal é belíssima. O mural de ícones ortodoxos toma conta da parede final da igreja. Senhoras com lenços cobrindo os cabelos apinham-se pelo prédio. Homens entram, beijam os ícones à frente do painel, tocam-lhes com a testa, e então limpam o vidro com flanela ali deixada para este fim. Como cidadão do maior país católico do mundo, é familiar e estranho estar naquele ambiente ortodoxo. O único caminho que nos liga é o barroco do prédio, do mistério. Mas o mistério católico e o mistério ortodoxo mostram suas faces escondidas ali também. A diferença da arquitetura, da organização do prédio. Aquele painel coberto de rostos canônicos implicando uma presença oculta por trás, inacessível.
No torre do mosteiro, vê-se o rio Deniépre cortando a cidade em zona leste e oeste. É enorme Kiev, espraia-se à distância. É muito bonita. Aquela sensação de estar toda ela entre leste e oeste. No meio-fronteira entre as zonas de influência política e militar do Império Austro-Húngaro e do Império Russo. Estes impérios dominando partes de seu território, possuindo-os em rodízio.
Caminhei muito naquela tarde, com Alexander Burlaka apontando os prédios, as vistas. Ao meio-dia, dirigimo-nos para a Estação Ferroviária Central, onde eu encontraria os organizadores do festival, Evgenija Lopata e Slava Pomerantsev, assim como os escritores ucranianos Oksana Zabuzhko, Kateryna Babkina e Dmytro Lazutkin para a viagem de trem a Carcóvia (Kharkiv), onde ocorreriam as primeiras leituras. Entre eles, também a excelente poeta russa Elena Fanailova. Na cafeteria da estação, comprei mais daquela boa e baratíssima comida ucraniana para o privilegiado com euros no bolso. À minha frente, na fila, soldados pediam vodca. A cena causava desconforto. Mais tarde, em conversas com escritores do país, eles relatariam como o alcoolismo vem se tornando um problema sério entre os soldados no front, desde o segundo acordo de Minsk, de 11 de fevereiro de 2015, que visa retomar o fracassado cessar-fogo do Protocolo de Minsk assinado em 5 de setembro de 2014. Retornarei a isso na terceira e última parte deste artigo.
No centro da estação, um lindo soldado jovem, que não poderia ter mais de 20 anos de idade, segurava uma caixa e pedia apoio financeiro para a guerra, que vem quebrando país. Organizados e agrupados os poetas, tomamos o trem para Carcóvia. São cinco horas de viagem. Em uma parada de cerca de 50 segundos na estação de Poltava, cidade natal de Nicolai Gogol, o editor Slava Pomerantsev, a escritora Oksana Zabuzhko (considerada hoje a mais importante do país) e eu descemos, às pressas, para dar três ou quatro tragos em um cigarro. De pé na estação, enquanto Zabuzhko me falava sobre Gogol, Pomerantsev quis fazer uma piada e me perguntou se estava com meu passaporte, caso o trem me deixasse para trás. Ele disse que, se me pegassem ali sem passaporte, me enviariam direto para o front em Dombass. Sorri amarelo, nervoso. Pensei na expressão gallows humor. Em meio à guerra e ao desastre econômico, as pessoas usam as armas milenares, estou certo disso, do humor, da ironia e do sarcasmo em meio à sandice.
(continua)