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Relato de uma viagem à Ucrânia (última parte)

sinagoga cinemaÉ enorme a Ucrânia. Mesmo para um brasileiro, acostumado às distâncias entre cidades e estados em nosso país, assombra-nos um pouco a Ucrânia após uma década na Europa, onde viagens de cinco ou seis horas em geral implicam o cruzamento de fronteiras, a troca de línguas. Mas então lembramo-nos que a Ucrânia é um país de geografia conturbada, naquelas mudanças que a História consegue impingir à terra. Isso fica claro após visitar quatro cidades no país: Kiev, Kharkiv, Chernivtsi e Lviv, que já foram cidades de vários países sem ter-se movido de seus rios e planícies. A terra do velho rei Oleg. Tornada cristã por Vladimir, o Grande (980–1015). Dos belos signos círilicos, apertada entre impérios como uma família entre vizinhos entrões.

Kharkiv, a segunda maior do país, deixa claro em sua arquitetura sua proximidade da Rússia. Pareceu-me uma cidade brutal, com sua arquitetura soviética, após a destruição pela qual passou durante a Segunda Guerra. Já foi parte do Império Russo. O censo de 1989 demonstrava uma população equilibrada entre ucranianos (50%) e russos (43%), as minorias sendo formadas por judeus e bielorrussos. Foi uma cidade importante para a vanguarda ucraniana, centro daquela que ficou conhecida como “Renascença abortada”, ou “executada”, pois inúmeros escritores, teatrólogos e artistas, como Les Kurbas, Mykola Khvylovy e Valerian Pidmohylny pereceriam durante os expurgos estalinistas. Foi em Kharkiv que ocorreu o massacre de Katyn, quando inúmeros intelectuais poloneses e oficiais do Exército polonês foram executados por ordens soviéticas. É hoje a cidade onde mora um dos mais conhecidos e importantes poetas contemporâneos do país, Serhiy Zhadan, nascido em 1974. Ali conheci o tradutor Serge Lunin, que fala em plena Ucrânia um belo português de Portugal. Com ele caminhei pela cidade, visitei algumas igrejas. A proximidade com a Rússia havia me deixado nervoso na hora de ler meus poemas com o teor que têm. Mas a experiência foi mais uma vez a mesma: quando nos abrimos com certo candor e confiança, é frequente que te estendam a mão.

A viagem para Chernivtsi (Czernowitz), onde a maior parte do festival ocorreria, foi de trem, um trem noturno. Em minha cabine, a poeta Iryna Tsilyk. Casada com um romancista ucraniano, seu marido estava no front, em Dombass. Ali, naquele trem antigo, do período soviético, numa cabine com uma poeta que esperava pelo marido, romancista, voltar inteiro da guerra, não sabia por vezes se estava ainda no século 21. Mas era justamente onde e quando estava, no século 21, e guerras só nos assustam ou espantam como anacrônicas a nós, privilegiados de uma Europa que há séculos se crê mais mundo de Oz que mapa de crateras. A guerra não é estranha para estes povos ao leste, que têm presenciado os maiores massacres do continente nas últimas décadas. De Sarajevo a Donetsk, até quando? A poeta Kateryna Babkina me informou que eu poderia fumar se ficasse na área onde os vagões se engatam, separada do exterior por uma parede de borracha, e permaneci ali algum tempo, escrevendo e conversando com uma horda de jovens que vinham do leste para um festival de música próximo à cidade de Ivano-Frankivsk. Ali conheci um beatboxer, chamado Alex, que insistiu em improvisar comigo enquanto eu vocalizava um dos meus textos. Nascido em Starobilsk, cidade próxima de Lugansk e que pode ser tomada pelo conflito, ele estava a caminho de um festival de música. Senti-me tomado por uma solidariedade e compaixão estranhas por aquele estranho. Pode ter que ir à guerra a qualquer momento, mas enquanto isso não acontecia, lá estava ele sorrindo, fazendo música, a caminho de um festival. Como no poema de Hilda Hilst, pensava “(n)esses que vão morrer. / Iguais a mim também”.

Em Chernivtsi, a Czernowitz natal de Paul Celan, percebe-se imediatamente estar em território do antigo Império Austro-Húngaro. É belíssima a cidade. Poupada pela guerra, não transparece ter sido palco de massacres pelos nazistas. Ali nasceu Paul Celan, ali foram presos seus pais, que morreriam em campos de concentração. A antiga sinagoga é hoje um cinema. Em cartaz, filmes de ação norte-americanos. O prédio da Universidade onde ocorre a abertura do festival é tombado pela Unesco. A cidade toda parece parada num tempo, em paz, tranquila. Os versos de Celan, que traduzi, me vêm à mente:

Leite negro da madrugada que bebemos à tardinha
nós bebemos ao meio-dia e de manhã nós bebemos à noite
nós bebemos e bebemos
cavamos uma cova nos ares onde possamos espreguiçar-nos
Certo homem habita a casa e brinca com víboras que escreve
que escreve quando escurece à Alemanha teu cabelo doirado Margarete

No festival, a poeta Iryna Tsilyk lê um poema seu dedicado ao marido, descrevendo um de seus retornos da guerra, enquanto ela lava seu uniforme, os lençóis onde ele mais tarde a tomará nos braços, tocará seus seios. Ouvindo a tradução do poema para o alemão, não sei julgar se o poema sobreviverá ao tempo. Tudo o que queremos é que seu marido sobreviva, ela sobreviva, seu filho de cinco anos. Fico bastante emocionado com o poema. A paz aparente de Czernowitz parte-se, todos se lembram da guerra. A guerra, ela mesma em aparente calma ao leste.

Minha última cidade na Ucrânia é Lviv, a cidade natal do polonês Zbigniew Herbert, a própria cidade tendo sido um dia polonesa. Num país em guerra, penso no grande poema de Herbert, “Crônica de uma cidade sitiada”:

Segunda-feira: as lojas estão vazias o rato converteu-se em unidade monetária
Terça-feira: o presidente da câmara foi assassinado por desconhecidos
Quarta-feira: rumores de armistício o inimigo pôs a ferros os nossos enviados

não sabemos onde eles os têm presos isto é onde os mataram
Quinta-feira: após uma assembleia tempestuosa a maioria votou contra
a proposta de rendição incondicional apresentada pelos mercadores
Sexta-feira: a investida da peste Sábado: suicidou-se N. N.
o valoroso guerreiro Domingo: não há água repelimos
o ataque até à porta oriental chamada a Porta da Aliança

eu sei que é monótono tudo isto não vai comover ninguém

(Zbigniew Herbert, excerto do poema “Crônica de uma cidade sitiada” em tradução de José Miguel Silva).

Na Estação Ferroviária de Lviv, onde pego um táxi para o aeroporto, vejo um jovem soldado, no rosto e nos ombros o peso do mundo, a marca de todas as desesperanças, sentado no chão, é provável, para economizar as 10 grívnias que haviam me cobrado mais cedo para sentar-me em uma das cadeiras da sala de espera. Quantos anos terá? Não pode ter mais que 21 anos, como tantos dos que encontrei na Ucrânia ao longo da viagem. Começo a escrever um poema sobre ele. Ele jamais saberá, nem mudará qualquer coisa em seu destino, mas quando o ler, em algum outro festival, será como uma oração por sua segurança na guerra. E me perguntarei, tenho certeza: “o que terá acontecido com o soldado da estação de Lviv?”

Data

terça-feira 22.09.2015 | 09:46

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