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Algumas mulheres portuguesas

Neste momento em que as mulheres do território estão uma vez mais sob ataque, desta vez realmente concentrado e destrutivo por parte dos homens que compõem o Congresso Nacional, o primeiro que nós podemos fazer como seres pensantes é voltarmo-nos justamente a elas, as mulheres, a fim de buscar formas de resistência. O obscurantismo determinado de homens como Marco Feliciano, Jair Bolsonaro e Eduardo Cunha (entre outros) voltou-se contra a grande Simone de Beauvoir. Vamos invocar ainda mais mulheres para o pensamento de todos no território. Clarice Lispector. Hilda Hilst. Stela do Patrocínio. Nise da Silveira. Antonieta de Barros. Lygia Clark. Mariajosé de Carvalho. Rose Marie Muraro. A grande viva Marcia Denser. Em nome da matriarca primeira da terra, Luzia. Da matriarca guerreira, Aqualtune, nossa Hécuba.

Mas toda ajuda é bem-vinda e necessária. Há irmãs do outro lado do Atlântico, e gostaria especificamente de recomendar algumas autoras portuguesas neste texto. Nos últimos 15 anos, duas autoras portuguesas foram lidas por nós com atenção especial: Adília Lopes, desde a publicação de sua Antologia (SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2002), e Matilde Campilho, agora, com seu Jóquei (São Paulo: Editora 34, 2015).

“Que morra Marta
mas que como Maria
morra farta”

— Adília Lopes, Antologia (SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2002)

Mas Portugal tem em sua terra mais autoras que precisamos começar a ler com mais atenção. Neste contexto, neste momento, não posso deixar de pensar em Maria Velho da Costa. Leiam este trecho de seu texto “Mulheres e revolução”:

“Elas fizeram greves de braços caídos. Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta. Elas gritaram à vizinha que era fascista. Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas. Elas vieram para a rua de encarnado. Elas foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água. Elas gritaram muito. Elas encheram as ruas de cravos. Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes. Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua. Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo. Elas ouviram falar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas. Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra. Elas choraram de ver o pai a guerrear com o filho. Elas tiveram medo e foram e não foram. Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas. Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro uma cruzinha laboriosa. Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões. Elas levantaram o braço nas grandes assembleias. Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos. Elas disseram à mãe, segure-me aqui os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é. Elas vieram dos arrebaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada. Elas estenderam roupa a cantar, com as armas que temos na mão. Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens. Elas iam e não sabiam para onde, mas que iam. Elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado. São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.”

— excerto de “Mulheres e revolução”, de Maria Velho da Costa, de seu livro Cravo (1976).

Penso também em Alexandra Lucas Coelho e seu romance O Meu Amante de Domingo (Lisboa: Tinta da China, 2014), sobre o qual já escrevi aqui [“Um amante de domingo e a vontade de matar um cabrão: nota sobre o romance de Alexandra Lucas Coelho”, DW Brasil, 08.04.15]. O livro me parece, além de uma leitura ótima, um ato de empoderamento político-literário. Uma vingança, de certa forma, como o romance epistolar de Chris Kraus, I Love Dick (1997). Um tomar as rédeas da narrativa.

Penso no humor sardônico de Golgona Anghel, como em seu excelente Vim Porque Me Pagavam (Lisboa: Mariposa Azual, 2011), uma poeta que, tenho certeza, precisa apenas chegar aos olhos e ouvidos dos brasileiros para gerar neles o mesmo espanto e lealdade que Adília Lopes e Matilde Campilho vêm gerando.

“Aos Sábados repousava:
instalava-me no lugar mais cómodo
da minha cultura ocidental,
de cachimbo num quadro de época,
e levantava com o olhar
as rolas passeabundas da marquise.”

—Golgona Anghel, Vim Porque Me Pagavam (Lisboa: Mariposa Azul, 2011).

Outra autora que eu creio precisa ser descoberta por brasileiros é Raquel Nobre Guerra. Formada em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa e com mestrado em Estética e Filosofia da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Raquel Nobre Guerra publicou Groto Sato (Mariposa Azul, 2012), que recebeu em Portugal o Prêmio PEN para obras de estreia. É outra portuguesa que acompanho com atenção.

“aqui morro muitos anos convosco
estremecendo à sabedoria dos tolos
aqui certo clima de nojo e uma galeria viva
de absurdos para a visão integral da coisa
solene
peçam-se óculos para ver melhor, peçam-se janelas
para ver o mar”

— Raquel Nobre Guerra, Groto Sato (Mariposa Azul, 2012).

Mulher ao marEncerro esta pequena lista de recomendações de leitura, que poderia se estender, e se estenderá no futuro, com a sugestão de pesquisa do trabalho da discreta e excelente poeta e tradutora Margarida Vale de Gato. Conhecida em Portugal por seu excelente trabalho como tradutora, verteu para o português autores como Lewis Carroll, Christina Rossetti, Oscar Wilde, W. B. Yeats, Herman Melville, Henry James, George Sand, René Char, Henri Michaux e Nathalie Sarraute. Seu trabalho, porém, como poeta, na série de livros chamado Mulher ao mar e Mulher ao mar retorna, merece muito mais de nossa atenção. Encerro com um poema seu na íntegra.

A imagem romântica
Margarida Vale de Gato

Há outras coisas, Horácio,
e a tua filosofia é barata,
na verdade não custa fixar
as coisas ideais à distância:
terás vista panorâmica
mas sempre a visão é polémica.

Gostava que alguém me mostrasse,
mas não terei nunca garantia
de que envelhecer faça sentido.

As pessoas prostram-se, queremos que nos digam
porquê não haver luz nos seus rostos. Crestam
os cravos, antes rubros. Não há modo
de saber se as monarcas
têm memórias arenosas de lagarta.
Tudo sucede dentro de estanques
casulos, a seda é densa,
não se faz ideia
se isto acaba. Estrelas foscas
correm, pessoas morrem, a vida
é breve, impávido o
real se esquiva a designar.
Comparar é colidir: o verbo
talvez nos leve
a mais nenhum sinal.

Data

segunda-feira 23.11.2015 | 09:46

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