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Nota sobre música contemporânea alemã, a partir do duo Lea Porcelain

A comunidade artística de que faço parte em Berlim é composta de forma majoritária por músicos. Mesmo os poetas que a compõem são mais conhecidos por seus trabalhos como performers. Ellison Glenn, poeta norte-americano, é mais conhecido por seu trabalho como Black Cracker, seu codinome como performer. O mesmo pode ser dito da britânica Annika Henderson, mais conhecida como Anika, ou a norueguesa Hanne Lippard, escritora nomeada há pouco por uma revista europeia como uma das melhores artistas do continente, por apresentar seu trabalho em vocalizações e performances em galerias e museus, mais que em festivais de literatura. É o mesmo tipo de trabalho vocal feito, por exemplo, pela sueca Cia Rinne ou os austríacos Max Oravin e Oskar May.

Eu acompanho bem a cena musical alemã, em especial a berlinense, também por ter estado à frente, por sete anos (2005-2012) da programação musical às quartas-feiras do clube Neue Berliner Initiative (NBI). O clube fez história na década de 90, pois foi lá onde começaram a se apresentar produtores de música eletrônica importantes como T.Raumschmiere (Marco Haas) ou Apparat (Sascha Ring). E sempre conversava com amigos da cena sobre o porquê de Berlim ou a Alemanha em geral não terem realmente produzido música pop de alcance internacional, com algumas exceções, como o duo Stereo Total. A Alemanha continua conhecida em grande parte por sua produção de música eletrônica, na qual poucos países a igualam ou superam.

O artista pop de maior renome ligado a Berlim é uma canadense, a grande Peaches (Merrill Nisker), que fez e ainda faz história, desde os primórdios da cena do electroclash em Berlim, de onde saíram ainda as Chicks On Speed, por exemplo. Não sei se haveria hoje um alemão com este nível de renome e influência no mundo da música pop. É claro que a própria definição de pop seria difícil e polêmica. Em certos círculos, a própria noção de pop será vista como inferior e desimportante. Mas isto me parece cegueira. Há coisas de extrema qualidade. Falemos então, de forma genérica e abrangente, da ideia de cancioneiro popular. Minha teoria é a de que o pop, neste aspecto, sempre estará ligado ao folk, influenciando a partir daí várias divisões, do pop ao punk e ao rock em suas encarnações instrumentais. Os Estados Unidos, com sua tradição forte do folk, gerou importantes artistas no pop, no punk, no rock. Em termos musicais, o que sempre complicou as coisas na Alemanha foi uma questão política. A instrumentalização que os nazistas fizeram da cultura popular alemã, ligando-a a uma noção de nacionalismo, interditou esta tradição para os músicos alemães no pós-guerra. Daí a necessidade de uma tabula rasa musical, que levaria à grande inventividade alemã na música eletrônica, com grupos como Kraftwerk, Tangerine Dream, Faust, Amon Düül  e Can, que ficariam conhecidos como o movimento do Krautrock.

O que me interessa, como amante da música popular e como poeta, é a maneira como países com tradição trovadoresca, como Portugal, Espanha e França, mantiveram uma forte tradição de poesia cantada, mas a Alemanha, que teve seus trovadores na figura dos Minnesänger (Walther von der Vogelweide, Wolfram von Eschenbach e Oswald von Wolkenstein estão entre os mais conhecidos), também teria forte influência na poesia lírica, como nas Lieder (canções) de Heinrich Heine, e, eu diria, influenciaria outra tradição forte alemã: a do cabaré. Aqui, pensamos nas maravilhosas colaborações entre Bertolt Brecht e Kurt Weill, que, eu ousaria dizer, fazem parte de uma tradição popular que vai desaguar no trabalho dos melhores cantautores alemães, como Rio Reiser (1950 – 1996) e Wolf Biermann (n. 1936). São os alemães que se aproximam da tradição que deu aos Estados Unidos, por exemplo, Bob Dylan, e, ao Brasil, Caetano Veloso e Chico Buarque. O cabaré informaria ainda o rock e o punk alemães, sua música industrial e a geração da NO Wave, com bandas como Malaria!, Palais Schaumburg e Grauzone, até chegar a este século, no punk, por exemplo, de bandas como Surf Nazis Must Die e Herpes, ambas capitaneadas por Florian Pühs.

Lea PorcelainSão aproximações. Talvez apenas uma teoria tresloucada minha. Berlim continua sediando vários projetos de música pop internacional, como Planningtorock,  rRoxymore ou Oni Ayhun, o projeto solo de Olof Freijer, do duo The Knife, além da própria Peaches. No cenário alemão, vêms urgindo projetos como Born in Flamez, Sizarr e o mais recente, o duo Lea Porcelain, do cantor Markus Nikolaus e do produtor Julien Bracht, que já havia feito um nome na cena de techno de Frankfurt.

Lea Porcelain parece beber de todas estas tradições, do cabaré, do Krautrock, da NO Wave e música industrial dos anos 80, do espírito punk alemão, trazendo-nos em seu EP de estreia canções com excelentes letras e um som árido, trilha sonora para estes nossos tempos difíceis. Com aparições frequentes em rádios inglesas ligadas à BBC em Londres, resenhas prestes a sair em revistas alemãs como Spex e Intro, o duo vem-se mostrando como a maior promessa berlinense de entrar nas paradas do que chamamos, internacionalmente, de pop. Abaixo, você pode ouvir o EP de estreia do duo.

Data

sexta-feira 04.12.2015 | 10:11

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