Notícias da República
Ano de Nossa Senhora da Catástrofe 515
Conversando com a fotógrafa e escritora brasileira Adelaide Ivánova em minha cozinha, falávamos sobre o massacre incessante dos cidadãos negros da República. Tantos meninos. A foto daquele pai negro chorando. O massacre de índios, mulheres, homossexuais. Falamos do número de tiros contra aqueles cinco garotos desarmados. 111. Cento e onze tiros. Quando disse o número em voz alta, percebi o que não havia percebido antes ao ler o número: é o mesmo número de mortos do Carandiru. Pensei: a simetria do terror no Brasil.
Quando passavam imagens do Carandiru ou de outro presídio na televisão, minha mãe sempre repetia a mesma frase: “Isso aí é lugar onde filho chora e mãe não ouve”. A imagem daquele pai negro em pranto, pai negro de um menino negro morto com 111 tiros enquanto celebrava seu primeiro salário. O Brasil é o lugar onde mãe chora e filho não ouve mais. Fui para a cama com este número na cabeça.
1 mais 1 mais 1.
Não.
1 menos 1 menos 1.
Como naquela passagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, na qual a personagem principal imaginava:
“… um velho diabo, sentado entre dous sacos, o da vida e o da morte, a tirar as moedas da vida para dá-las à morte, e a contá-las assim:
— Outra de menos…
— Outra de menos…
— Outra de menos…
— Outra de menos…”
Este velho diabo será muito mais nosso Estado, que jamais se descolonizou em suas estruturas e ideologias, apenas trocou o passaporte do gerente da máquina de moer gente. O velho diabo não conta moedas, senta-se entre dous sacos, o da vida e o da morte, a tirar negros, índios, mulheres e homossexuais da vida para dá-los à morte, e a contá-los assim:
— Outro de menos…
— Outro de menos…
— Outro de menos…
— Outro de menos…
Enquanto isso, as atenções de todos – em meio a uma catástrofe ambiental em Minas Gerais e a tragédia anunciada de Belo Monte, em meio ao fuzilamento de jovens negros e vídeos da Polícia Militar abordando cidadãos negros nas ruas com uma arrogância e violência que cidadão branco nenhum admitiria se as experimentasse – é distraída pelo baixo clero do Legislativo, que coordena sua conspiração contra a Presidente em total irresponsabilidade e desrespeito à Constituição. Não há dúvidas de que estes senhores não perdem um único episódio da série americana House of Cards, na qual um membro inescrupuloso do baixo clero do Congresso norte-americano conspira para chegar à presidência.
E, no entanto, como é difícil defender um governo que demonstrou tanto desespeito à Constituição em se tratando dos direitos dos povos indígenas. Mas quem, entre estas pessoas pedindo a impunação de Dilma Rousseff, está se lixando ao menos um tiquinho para os direitos dos povos indígenas? A maioria quer apenas reverter o resultado das urnas, e, tendo a vitória da atual presidente sido tão apertada, qual a dificuldade real de usar a insatisfação difusa da população para reverter o processo?
Michel Temer, vice-presidente, eminência parda e poeta medíocre, escreveu uma carta a Rousseff acusando-a de jamais ter confiado nele ou no PMDB. Quem, em sã consciência, confiaria no PMDB?
Ah! Um poema! Um poema de Michel Temer! Diz-nos tanto!
Embarque
Michel Temer
Embarquei na tua nau
Sem rumo. Eu e tu.
Tu, porque não sabias
Para onde querias ir.
Eu, porque já tomei muitos rumos
Sem chegar a lugar nenhum.
Foi extraído de seu livrinho, cujo título vem também a calhar neste momento de cartinhas: Anônima Intimidade [Topbooks, 2012]. Oh! Atente, ó leitor, para a maneira como o vice-presidente do confiável PMDB usa o adjetivo antes do substantivo, assim, como quem diz, “caso você não tenha percebido, isso aqui é poético”.
O deputado federal Jean Wyllys analisou bem a “carta”, toda ela em estilo de bombástico comunicado de imprensa: “O vice-presidente, um velho operador político do PMDB que estes anos todos foi muito bem pago pelo poder público para atuar como garantia da coligação desse partido com o PT (coligação cujo custo o PT está pagando), acha que ninguém vai perceber que, se o problema dele fosse a ‘desconfiança’ da chefe Dilma com relação a ele e ao PMDB, seu partido, ele deveria ter enviado essa carta há uns bons anos, né não? Ela está chegando muito atrasada porque tem, na verdade, outro objetivo: deixar bem claro que Temer está disposto a assumir a Presidência. É uma mensagem para a bancada do PMDB no Congresso, para a oposição de direita que poderia compor um governo de transição com ele, para os jornais, para os mercados e, talvez, para o próprio PT, que entenderá que o preço para evitar tudo isso será caro, muito mais caro ainda do que foi, até agora, a ‘lealdade’ dos seus supostos aliados”.
§
A notícia do fechamento da Cosac Naify segue gerando reações, paralelos com a economia e assim por diante. Peguei-me pensando estes dias em duas editoras que jamais descuidam do trabalho gráfico, editando belos, importantes e premiados livros: o Selo Demônio Negro e a Editora Autêntica. Vanderley Mendonça, que está à frente do Demônio Negro, postou há pouco este desabafo nas redes sociais:
“Muitas pessoas têm nos perguntado por que não encontram os livros dos selos que editamos em livrarias pelo país. A resposta é simples: porque as livrarias não nos pagam! Sim, temos que ficar cobrando! E as que pagam, quando pagam, é em 90 dias. Para uma microeditora isso é um custo muito maior que o sacrifício de editar poesia e boa prosa. Nos três últimos anos, tivemos três vencedores do Prêmio Jabuti consecutivamente, nas categorias Poesia e Contos, além de outros autores finalistas. Também tivemos um livro vencedor do prêmio Fundação Biblioteca Nacional 2015 (Sem vista para o mar, de Caroline Rodrigues). Juntamente, outras microeditoras também ganharam prêmios em diversas categorias. Tal reconhecimento, além de dar visibilidade aos autores que editamos, tem levado pessoas e livrarias a procurar cada vez mais nossos livros. Porém, os problemas com a distribuição continuam, isto é, os calotes das livrarias.” [trecho de “Carta aos Leitores dos Selos Demônio Negro e Edith”, do editor Vanderley Mendonça]
Depois não adianta reclamar que editora fecha.
Vamos encerrar com uma boa notícia e uma sugestão importante às editoras do país. A editora Hedra acaba de anunciar o lançamento de outra edição dos poemas completos de Orides Fontela. E que bela capa! Tenho a edição da coleção Claro Enigma e da Cosac Naify. Vou querer ter esta também. Este fim de semana mesmo carreguei uma delas para a mata, em retiro de escrita, lendo enquanto caçava pássaros no ar. Já escrevi com admiração sobre seus pequenos cubos de energia concentrada, que explodem em luz se os lê com atenção de pássaro pousado. Em meu artiguinho na Modo de Usar & Co., digo: “Seus poemas têm, em minha opinião, apesar da superfície polida de cristal, uma violência sem muitos paralelos na poesia do pós-guerra no Brasil. O mesmo tormento possa talvez ser sentido na prosa e poesia de Hilda Hilst, mas nesta outra mística a solução era o escárnio e a exuberância do dilúvio, enquanto em Orides Fontela o desértico, daquele que jamais possuiu coisa alguma, era preferível”. [“Orides Fontela”, Modo de Usar & Co., 15.04.2008]
Mas preciso reagir ao anúncio da Hedra: o que significa dizer que “Orides Fontela se revelaria a poeta mais importante de sua geração — que reúne nomes como Hilda Hilst, Adélia Prado, Roberto Piva e Paulo Leminski”? Entendemos o que é linguagem de “comunicado de imprensa” (Michel Temer deu-nos outro bom exemplo), mas quem edita poesia deveria ter mais cuidado com estas coisas. Hilst, Piva, Fróes, Torquato… aquela foi uma geração extremamente plural e importante. Não ajuda a batalha espalhar este tipo de bravata. É muito bonito, sim, ver as obras destes poetas todos começando a ser reunidas em volumes únicos. Ajuda-nos muito. Por fim, e talvez ainda em tempo, como pergunta e desafio às editoras Hedra, e Editora 34, e Editora 7Letras, e Companhia Das Letras, entre outras: quem vai reunir em livro as obras poéticas de Adão Ventura e Paulo Colina? Está na hora. Ainda é hora. Seria um momento importantíssimo para um ato desta coragem e visão.