Medo dessa gente
Neste fim de semana, pessoas tomaram as ruas para pedir a impugnação de Dilma Rousseff. Outra vez. É seu direito em uma democracia, com uma Constituição que defende a democracia direta através de protestos. O movimento foi um fracasso, com muito menos gente do que os organizadores esperavam. É claro, também, que são as mesmas pessoas que esperam que a polícia militar, herança do Regime que muitos deles defenderam e defendem, desça o cassetete sobre os protestos contrários a suas ideias.
Dialogar com eles seria difícil, se não impossível. Tentar argumentar que o processo não tem base jurídica, como vários juristas apontaram nas últimas semanas, e que há a contradição de apoiarem um processo encampado por Eduardo Cunha, ele próprio acusado de fraudes e corrupção, contra o qual há provas abundantes enquanto nada há contra a presidente eleita (que eu não apoio), seria um desperdício. Há entre eles um número considerável de gente que nunca quis Dilma Rousseff ou o PT no poder. A impugnação deste mandato é sua última carta na manga para reverter o resultado das eleições de 2014, que não aceitam.
Esta nova fase da operação Lava Jato, com a Catilinária, que levou a cabo seu mandado de busca e apreensão nas residências do deputado Eduardo Cunha, talvez aponte para a saída da fase partidária das investigações e traga revelações da sujeira toda e completa. Todos os culpados, não importa qual o partido, se situação ou oposição, precisam ser julgados. O nome da operação refere-se aos discursos de Cícero contra Catilina. O primeiro deles foi recitado no Templo de Júpiter em 8 de Novembro de 63 a.C., para onde havia sido convocado o Senado de Roma. A ocasião fora a conspiração contra o Senado dirigida por Lúcio Sérgio Catilina, candidato vencido ao cargo de cônsul nas eleições de Julho de 64 a.C. assim como nas do ano anterior. Chefe da conspiração, tinha conseguido até aí não ser incriminado. Tudo isso soa familiar? Não deixa de surpreender o humor da Polícia Federal. Quem será nosso Catilina? Qual seu candidato preferido a Catilina dos Bruzundangas? O discurso de Cícero começa assim:
“Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há-de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há-de precipitar a tua audácia sem freio? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda nocturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem? Quem, de entre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, em que local estiveste, a quem convocaste, que deliberações foram as tuas?” (tradução de Pe. Antonio Joaquim, Orações principaes de M. T. Cicero, 3 vols., Lisboa, Regia Off. Typ., 1779-1780).
Em meio a isso tudo, assisto a vídeos das manifestações no Rio de Janeiro, nas quais um grupo de jovens negros que fazia sua celebração anual do esporte de longboard é escurraçado da praia por dar medo na gente branca de bem que lá protestava. Em outro vídeo, que me causou náusea, um menino negro é atacado por senhoras e senhores brancos de bem, que o acusavam de roubo. Já nas mãos da Polícia Civil (o que deveria bastar), vemos senhoras e senhores brancos de bem tentando agarrar o menino pelos cabelos, tentando dar socos em sua cabeça. Dando socos em sua cabeça. Enquanto isso, gritavam com ódio. Uma moça bem vestida, certamente diplomada, que pode entrar em qualquer restaurante, dizia que o menino devia ser metralhado, devia levar um tiro na cabeça. Incitação à violência clara. A polícia deveria ter dado voz de prisão a ela imediatamente. A gente branca de bem gritava: cadê os direitos humanos? É. Cadê os direitos humanos?
Eu tenho medo é dessa gente branca de bem – bem pensante, bem vestida – que se acha no direito de dar socos na cabeça de um menino de não mais de 12 anos, em plena praia, gritando “tem que metralhar! nesses tem que dar é tiro na cabeça!”, os diplominhas chacoalhando de seus pescoços, as carteirinhas de clube de campo feito penduricalhos em seus lóbulos, enquanto bradam pela decência na República. O ódio em seus olhos. Eu tenho medo é dessa gente.
Alguns amigos disseram que não se deveria temê-los. Mas eu temo. Como escreveu Ricardo Aleixo, conheço essa gente “pelo cheiro, // pelas roupas, / pelos carros, // pelos aneis e, / é claro, // por seu amor / ao dinheiro”. Olho para a História do país e vejo do que esta gente já foi capaz, do que esta gente ainda é capaz. É a gente branca de bem que saiu às ruas pela Tradição, Família e Propriedade, que foi a base popular do Regime Militar. Que ama a herança da ditadura, o fato de que a sociedade civil brasileira ainda é policiada por militares.
Muitos têm se referido ao “ovo da serpente” por certos acontecimentos na República, mas falar em ovo é enganador, pois leva a crer que a serpente não chocou, que não quebrou ainda as paredes brancas do ovo. Pois a serpente está entre nós, sempre esteve entre nós, enrola-se entre nossas pernas. Há séculos? Há décadas? Os fascistas brasileiros, que certamente não são todos que estavam ali naquela praia carioca, mais estão para um urso, um urso ainda que sarnento, um urso que hiberna e acorda a intervalos regulares, sempre que estamos prestes a chegar à primavera.
Esse medo, com náusea, é o que deve nos manter alertas, é o que deve nos lembrar que esta gente não se subestima. Subestimar do que é capaz esta gente é um erro. Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor? Diante dos últimos acontecimentos, preferiria que não.
Sobre o “movimento”, encerro com um poema de Paulo Colina (1950-1999).
Algum Conceito de Movimento
Paulo Colina
A troca rápida e precisa de máscaras
atendendo a situação da cena,
não é, companheiro, um movimento.
A impulsão nos braços fraternos
para um salto vertical, em busca do poder ao nada,
menos é, companheiro, um movimento.
O sibilar da língua bifurcada da serpente,
prefaciando uma canção dolorida e amarga,
tampouco é, meu irmão, um movimento.
A demolição das casas da mente,
antes que se trabalhe a massa e o concreto,
muito menos é, companheiro, um movimento.
Ao que me consta, meu irmão,
movimento é:
logo ao primeiro encontro,
ao primeiro aperto de mão,
um sorrir sorrindo claro e aberto
com todos os dentes dos dedos
e do peito;
um mergulhar nessa angústia
que te disseca
e sairmos prenhes da mais pura
esperança, aos tropeços, pela cidade;
os soluços calmos do suicídio
no vórtice em fogo
entre as raízes das coxas
da mulher que te completa;
a liberdade do pensamento aflito
de esquadrinhar todos, mas todos todos
os quadrantes do firmamento.
Por isso, mano velho, companheiro em luta,
continuo ao passo do meu coração armado.