Mais blogs da DW DW.COM

Flip 2014

SorókinAbriu ontem em Paraty a Flip 2014, décima-segunda edição do evento. Desde sua fundação em 2003, a festa literária foi alvo de inúmeras críticas, mas firmou-se como a mais conhecida no país. Há dois anos, eu próprio uni-me ao coro dos críticos, em um artigo para a Deutsche Welle Brasil no qual discutia o parquíssimo número de autoras no evento desde sua criação, refletido ainda na escolha dos homenageados, entre os quais apenas Clarice Lispector (1920 – 1977) compareceu até a presente data. O número de escritoras no evento jamais chegou a uma dezena, entre mais de 40 convidados a cada ano. O que seria um escândalo em várias partes do mundo, no Brasil parece não incomodar muita gente.

Este ano não é diferente: entre os 47 convidados principais, há 8 mulheres. Não são todas escritoras ligadas à literatura: o evento de 2014 traz a fotógrafa Claudia Andujar, a atriz Fernanda Torres, e nomes ligados ao jornalismo, como a brasileira Eliane Brum e a argentina Graciela Mochkofsky. Como o homenageado deste ano é Millôr Fernandes (1923 – 2012), escritor que construiu sua carreira dentro da imprensa brasileira, o evento, que invariavelmente conta com jornalistas como curadores, tem uma presença forte de autores ligados à imprensa entre os convidados.

Duas das ficcionistas presentes são jovens que alcançaram renome em seus países ganhando prêmios importantes, como a canadense Eleanor Catton, ganhadora do Man Booker Prize, e Jhumpa Lahiri, britânica filha de imigrantes indianos, ganhadora do Pulitzer. Neste aspecto, a festa tem sido generosa com autores jovens, contando a cada ano com alguns escritores que iniciaram há pouco suas carreiras. Este ano, a festa traz o suíço Joël Dicker (n. 1985) – que tem sido celebrado por suas vendas mundiais, e ainda o paquistanês Mohsin Hamid (n. 1971) e o peruano Daniel Alarcón (n. 1979). Há que se notar ainda que, com frequência, os nomes aparentemente vindos de fora do âmbito cultural EUA-Europa são filhos de imigrantes ou autores que produziram sua obra nos Estados Unidos ou Europa, escrevendo em inglês. Estas são questões que serão vistas por alguns leitores deste texto, tenho certeza, como meramente políticas e portanto, na mentalidade ainda reinante em grande parte do Brasil, extraliterárias.

Mas em um evento que tem com frequência se furtado ao que outros veriam como responsabilidades, é importante destacar a presença do escritor ianomâmi Davi Kopenawa e do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro em Paraty este ano, especialmente em meio à intensificação das perseguições e assassinatos de líderes indígenas no país, com uma violência crescente sob a mudez e a conivência do Palácio do Planalto e do Ministério Público. Na edição do evento no ano em que são lembrados os 50 anos do golpe de 64, há uma presença forte de autores ligados ao questionamento político da época, e ainda mesas de discussão, como a que reúne Bernardo Kucinski, Marcelo Rubens Paiva e Persio Arida, chamada “Memórias do cárcere: 50 anos do golpe”. Num ano como este, não apenas pela data histórica, mas pelos acontecimentos atuais em torno dos protestos, isso é mais que benvindo.

Nomes importantes na festa deste ano incluem o cultuado autor português Almeida Faria (n. 1943), autor de A Paixão (1965); o russo Vladímir Sorókin (n. 1955) [foto acima], autor de A Fila (1984) – obra central da literatura conceitual e pós-moderna em seu país, que faz dele herdeiro e o liga à ala mais experimental da prosa e poesia russas no pós-guerra, como a de Dmitri Prígov (1940 – 2007); e ainda o chileno Jorge Edwards (n. 1931), ganhador em 1999 do Prêmio Cervantes.

A festa deste ano traz uma gama bastante variada de nomes ligados ao jornalismo, à arquitetura, à sociologia e à ciência. São muitas as estantes nas livrarias precisando de atenção. Quanto à poesia, talvez esta seja a curadoria mais fraca da história do evento, com apenas dois autores, Charles Peixoto, e outro carioca, o jovem Gregorio Duvivier, cuja carreira tem sido alavancada por sua fama como comediante. Estes autores têm obras que certamente merecem seu espaço e atenção, mas estão longe de ser as expressões mais inovadoras da poesia brasileira contemporânea.

É provável que seja ocioso reprisar as críticas à Flip. Festa do mercado editorial, já sabemos da influência que as grandes editoras têm sobre a curadoria do evento. A escolha invariável de jornalistas para a curadoria também demonstra certa tendência. Talvez não se possa esperar grande ousadia de um evento editorial, ligado portanto às regras do mercado. Para dar um exemplo do campo da música, seria muito frutífero ver no Brasil um festival literário de grande porte que fizesse o que faz o excelente festival londrino Meltdown, que convida para a curadoria sempre os nomes mais expressivos, experimentais e respeitados da cena musical. Patti Smith, David Bowie, Scott Walker, Yoko Ono e Antony Hegarty já foram curadores do evento. Um festival como este mantém a cena musical inglesa em contato anual com o que há de experimental acontecendo no mundo.

No que toca à Flip, o país pode contar a cada ano talvez apenas com um ou dois nomes mais ousados, como é o caso de Vladímir Sorókin este ano, para ter contato com expressões inovadoras em outras línguas. Quiçá os escritores brasileiros jovens presentes no evento possam desfrutar desta oportunidade. Mas, com os custos ligados à visita ao evento, seu esconderijo idílico na apropriadamente colonial Paraty e a presença marcante de autores que, de qualquer forma, já têm grande espaço na imprensa, temo que a Flip seguirá sendo, em grande parte, apenas uma celebração do status quo.

Data

quinta-feira 31.07.2014 | 11:25

Compartilhar