O campo minado da língua alemã
Na semana passada, em conversa ao telefone com a romancista e poeta alemã Odile Kennel, com quem tenho a sorte de contar como tradutora, ela soltou a frase: “A língua alemã é um campo minado.” Estávamos discutindo sua tradução para o alemão de um artigo meu, escrito em português e que sairia em um jornal alemão, no qual fui convidado a falar sobre poesia e política. Tentávamos encontrar uma maneira de contornar as implicações nada salutares, em alemão, para uma palavra tão simples em suas implicações em português: “comunidade”. Se usássemos Gemeinde, caía-se em território da religião. Já Gemeinschaft poderia ecoar conceitos manchados pelo nazismo. Acabamos usando Gemeinwesen, por sugestão de Rainer Moehl, que no entanto tem um caráter mais abstrato do que comunidade em português. Escrever em português tendo que prever possíveis problemas de implicação política em alemão é enlouquecedor.
Pense em dois exemplos: ao discutirmos política em português é comum que palavras como “terra” e “povo” sejam invocadas. Em alemão, estas palavras estão talvez indelevelmente manchadas pela ideologia nazista. Há ainda outras questões, de contexto histórico. Certa vez, conversando com um amigo alemão, ele ficou furioso que eu defendesse um maior “isolacionismo” norte-americano. Não demorou para que eu percebesse que a escolha desta palavra tinha implicações completamente diferentes para ele, alemão, do que tinha para mim, brasileiro. Para um alemão, o isolacionismo havia significado a entrada tardia dos Estados Unidos na Segunda Guerra, e uma maior demora possível na derrota nazista. Portanto, uma ideia de “intervencionismo” americano, para um alemão, evoca majoritariamente aspectos políticos positivos. Significa a derrota de Hitler e traz à mente imagens como a da ponte aérea de alimentos que abasteceu a Berlim Ocidental durante o bloqueio soviético. Para um brasileiro ou latino-americano de onde ditaduras sangrentas haviam sido instaladas com a ajuda dos Estados Unidos, este intervencionismo tem praticamente apenas implicações negativas.
Estas preocupações são claras e constantes para escritores alemães. Há os que trabalham justamente nesta linha fina. Ler W.G. Sebald em alemão é muito diferente de o ler em qualquer outra tradução, por excelente que seja, porque este trabalho dentro da língua, o de implicações, só pode ser compreendido em alemão e por alemães. Em seu livro Jubeljahre, o jovem poeta berlinense Max Czollek voltou a uma ideia de desnazificação da língua em alguns dos poemas, trazendo especificamente algumas destas palavras manchadas, propositalmente, para o corpo do texto. Este é talvez um dos últimos estágios na apredizagem de uma língua: a de perceber estes meandros sutis. Requer um conhecimento amplo não apenas da História do país, mas dos textos e da linguagem que formam esta História. Há 14 anos em Berlim, apenas nos últimos anos estas sutilezas começaram a ficar mais claras para mim. A língua alemã segue sendo, por ora, um campo minado.