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Livros que dão febre na boca

É assim que eu descrevo o efeito que certos livros têm em mim. Uma febre na boca. Uma sensação de aquecimento entre o diafragma e o palato. Um amolecimento dos dentes. Sei que a primeira vez que senti isso foi aos 17 anos, quando terminava o colegial nos Estados Unidos, lendo o romance O Dia Em Que Ele Mesmo Enxugará Minhas Lágrimas (1972), do japonês Kenzaburō Ōe, que havia acabado de ganhar o Prêmio Nobel. Não creio que o livro tenha tradução ainda para o português. Era 1994. O que no livro gerava a sensação? Ainda não sei com certeza. Tenho apenas pistas.

Aos 19, num barco cruzando um certo mar onde dizem que os velhos deuses iam banhar-se (antes de morrerem), senti a mesma febre lendo Go Tell It On The Mountain (1953), de James Baldwin, atormentado pelo jovem deus de Constantino. Ou dois anos mais tarde, num metrô da Zona Leste de São Paulo, fui tomado pela febre em meio aos outros passageiros, um medo de estar ficando líquido, ao ler A Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector, a febre irradiando-se a partir dos pulmões. No ano seguinte, enquanto cursava Filosofia na Universidade de São Paulo, fui possuído por uma das ocasiões mais fortes da febre ao ler Qadós (1973), de Hilda Hilst, enquanto devia estar lendo algum filósofo inglês da epistemologia, ou algum lógico francês.

Com certeza, houve a febre com alguns capítulos de Os Detetives Selvagens (1999), de Roberto Bolaño, e especificamente durante o capítulo 32 de Rayuela (1963), de JVittoriniulio Cortázar, aquela carta de La Maga a seu bebê Rocamadour: “Es así, Rocamadour: En París somos como hongos, crecemos en los pasamanos de las escaleras, en piezas oscuras donde huele a sebo, donde la gente hace todo el tiempo el amor y después fríe huevos y pone discos de Vivaldi, enciende los cigarrillos y habla como Horacio y Gregorovius y Wong y yo, Rocamadour, y como Perico y Ronald y Babs, todos hacemos el amor y freímos huevos y fumamos, ah, no puedes saber todo lo que fumamos, todo lo que hacemos el amor, parados, acostados, de rodillas, con las manos, con las bocas, llorando o cantando…”

E em 2011, pior ano da minha vida, a febre ao ler Gravidade e Graça (1947), de Simon Weil, ou a novela Emma Enters a Sentence of Elizabeth Bishop’s, do volume Cartesian Sonata and Other Novellas (1998), de William H. Gass. A última vez que a senti foi em 2012, lendo Os Anéis de Saturno (1995), de W.G. Sebald. Agora, mais uma vez a sinto lendo a tradução brasileira do romance Conversa na Sicília (1937), de Elio Vittorini. A gente busca entre dezenas de livros justamente estes, que nos causam quase um transtorno de beleza. E nunca sabemos quais farão isso. Será que estes mesmos livros causariam em outros este transtorno de beleza? Vou voltar a isso no próximo texto.

Data

sexta-feira 22.07.2016 | 05:03

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