Berlim, capital queer
Neste mês de julho, três eventos mobilizaram e estão mobilizando a comunidade queer berlinense. Entre 14 e 16 de julho, houve no tradicional Literarisches Colloquium Berlin o evento “Empfindlichkeiten: Homosexualitäten und Literatur” (Sensibilidades: Homossexualidades e Literatura), do qual participei ao lado do jovem romancista francês Édouard Louis, da romancista turca Perihan Magden, do romancista italiano Mario Fortunato, do romancista marroquino Abdellah Taïa e do poeta russo Dmitry Kuzmin, entre outros. O título do evento foi extraído de uma citação do escritor alemão Hubert Fichte (1935-1986), de seu livro inacabado Geschichte der Empfindlichkeit (História da sensibilidade), publicado postumamente em fragmentos em 1987.
Hubert Fichte é um dos ícones da comunidade queer alemã, por seu romance Versuch über die Pubertät (Ensaio sobre a puberdade, 1974), no qual relata a descoberta de sua própria homossexualidade na adolescência. Infelizmente, Fichte é completamente desconhecido no Brasil, apesar de sua relação com o país: em 1971 ele viveu na Bahia, onde pesquisou o candomblé. Nome respeitado, ainda que marginal, da etnografia alemã, sua experiência no Brasil desaguaria em seu trabalho etnopoético, especificamente no livro Xango (Xangô, 1976). Durante 3 dias, discutimos as relações entre (homo)sexualidade e literatura, assim como a posição de Fichte na literatura alemã.
O segundo evento foi, é claro, a Christopher Street Day, celebrada ao redor do mundo pelo Levante de Stonewall, a 28 de junho de 1969, quando homossexuais pobres, negros e latinos, drag queens, e amigos se rebelaram contra o tratamento policial contra homossexuais na cidade de Nova Iorque, especificamente no bar Stonewall, da Christopher Street. O terceiro evento está acontecendo neste momento, começou ontem e encerra-se hoje: o Yo! Sissy Festival, que trouxe aos palcos de Berlim nomes da música queer contemporânea como Mykki Blanco, Le1f, Kablam, Lauren Flax, Ande, e vários outros.
Berlim tem sua fama. Enquanto escritores como Ernest Hemingway e Tristan Tzara mudavam-se para Paris em busca de fama, outros como Christopher Isherwood e W.H. Auden mudavam-se para Berlim para se jogarem nos inferninhos gays de Schöneberg. Não que Paris não tenha sua própria história de putaria, como os trabalhos de Henry Miller e Anaïs Nin comprovam. Mas Berlim, com sua moral relaxada dos tempos da República de Weimar, com os cabarés que, de certa forma, até hoje subsistem, era o antro dos marginais. Ainda é.
Restaria encerrar este texto com algumas impressões sobre esta relação entre homossexualidade e literatura. O espaço certamente não o permite, complicada e polêmica como é ainda hoje esta discussão. Recorro a uma espécie de anedota pessoal, à qual me referi em meu ensaio lido no evento do Literarisches Colloquium. Enquanto escrevia meu primeiro livro, anotava os fragmentos de poemas e ensaios em um caderno de capa dura azul da Tilibra. Meu trabalho vinha se aprofundando em uma obessão pelo corpo: pelo corporal, pelo terreno, pelo contextual, pelo performático. Ao fim do caderno, eu anotava os nomes de trabalhos e autores que me entusiasmavam justamente por esta preocupação com o corporal e o contextual, o histórico. Quando encerrei o caderno e o livro, percebi que, por algum motivo, os nomes que havia anotado eram majoritariamente de mulheres, homossexuais e autores não brancos. O que fazia com que estes autores, mulheres, homossexuais, negros, tivessem uma relação distinta com o corpo em seus trabalhos? Minha resposta, uma tentativa de resposta, com a qual encerro este texto é: porque estes não podem se dar ao luxo de abstraí-lo.