Os loucos e os sãos em português e em alemão
Há alguns anos, quando assisti ao documentário The Devil and Daniel Johnston (2005), sobre o cantor americano que tivera sua carreira cortada pelo atropelo dos sintomas do transtorno bipolar que seria diagnosticado mais tarde, pensei no perigo de nossa cultura ainda romântica, ao mitificarmos as vidas difíceis desses artistas enquanto estamos no conforto de nosso sofá e da mentiraiada que tecemos para nós mesmos para manter nosso funcionamento em meio à sociedade.
Desde o Romantismo, é tentador seguir vendo o artista sempre como outsider, marginal, louco, autodestrutivo, ou seja, equiparando de alguma forma a arte e a loucura. Damos uma espécie de glamour a Rimbaud, morrendo sozinho e esquecido, a perna em gangrena; a Edgar Allan Poe, morrendo bêbado numa sarjeta, algo que seu conterrâneo Jack Spicer repetiria à sua maneira um século mais tarde. No Brasil, a crítica Flora Süssekind já escreveu sobre o processo de santificação dos mortos jovens da literatura, como Ana Cristina Cesar e Paulo Leminski. A mesma aura cerca Torquato Neto.
Sobre isso tudo, penso em uma frase do artista alemão Martin Kippenberger: “Não posso cortar uma das orelhas todos os dias.” Mas em nós talvez haja a sensação de que esses loucos geniais, como Arthur Bispo do Rosário e Robert Walser, não sejam tanto loucos quanto tenham acesso a alguma verdade que nos permanece escondida, por estarmos em meio à nossa mentiraiada pessoal. Não é isso que intuímos e buscamos também em artistas?
Hilda Hilst dedicou O obscena senhora D (1982) a um antropólogo americano chamado Ernest Becker. Nas décadas de 1960/70, quando chegou ao auge o movimento da antipsiquiatria, seu livro The Denial of Death (1973) foi uma contribuição ao debate, e recebeu, postumamente, o Prêmio Pulitzer. Baseado no trabalho do psicanalista vienense Otto Rank (1884-1939), Becker argumentou à época o que pode nos parecer um clichê hoje, mas ainda não era naquele momento, quando pessoas ainda recebiam eletrochoque para “curar” qualquer tipo de comportamento diferente: de que as pessoas consideradas loucas são apenas aquelas que não conseguem criar para si todo esse sistema de defesa psicológica que inventamos para nos proteger de um mundo que é, sim, assustador.
Somos sãos porque somos capazes de mentir para nós mesmos. Os outros morrem, nós não. Os outros sofrem acidentes ao porem os pés para fora de casa, nós não. Para Rank e Becker, o medo da morte é a força motriz da cultura humana, e da nossa criação de projetos heroicos para nós mesmos: morrer por uma pátria, por um deus, por um amor. Para dar sentido ao que intuímos não ter sentido algum. Como nas últimas páginas de A Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector, quando o narrador anuncia a morte de Macabéa: “E agora – agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?! Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim.” Hilda Hilst foi ela mesma obcecada com a morte e com a loucura. Temeu e cortejou ambas até o fim.
As línguas portuguesa e alemã têm ambas seus loucos lúcidos. O Brasil teve Qorpo-Santo, Arthur Bispo do Rosário e Stela do Patrocínio. Neste século, tivemos o trabalho de Rodrigo de Souza Leão e seu Todos os cachorros são azuis (2008). Portugal teve Antônio Gancho e Sebastião Alba, loucos e lúcidos cada qual à sua maneira. Na Alemanha, há Unica Zürn, que escreveu aqueles anagramas geniais. Há os suíços Robert Walser, Adolf Wölfli, Hans Morgenthaler, Friedrich Glauser e Constance Schwartzlin-Berberat, que passaram todos, em algum momento, pela Klinik Waldau. Constance Schwartzlin-Berberat é particularmente interessante (e a menos conhecida) por seu trabalho de escrita gráfica.
Em reação a meu último artigo, Victor Heringer reagiu trazendo para a conversa e apresentando-me a artistas do Hospital Psiquiátrico do Juqueri, como Perdro Cornas e Albino Braz. Davi Pessoa, por sua vez, defendeu maior atenção à figura precursora de Osório César, o psiquiatra responsável pelo Juqueri e pioneiro no uso da arte como recurso terapêutico. Foi o autor de Expressão artística nos alienados: contribuição para o estudo dos símbolos na arte (1929) e uma influência sobre o trabalho de Nise da Silveira. Pedro Cornas foi um artista visual que viveu grande parte de sua vida no Juqueri. De origem espanhola, Cornas trabalhou no Brasil como gravador antes de ter diagnosticada a esquizofrenia. Em 1932, foi internado no Juqueri e posto aos cuidados do doutor Osório César. O MASP trouxe estas figuras para nossos olhos uma vez mais na exposição “Histórias da loucura: desenhos do Juqueri”, em 2015, com trabalhos de Pedro Cornas, Albino Braz, J. Q., Claudinha D’Onofrio, Pedro dos Reis, Sebastião Faria, A. Donato de Souza, Marianinha Guimarães, Armando Natale e Homero Novaes.
Como explicar a beleza construtiva e conceitual desses ditos loucos, ao contemplar os trabalhos insanamente bonitos de Arthur Bispo do Rosário, Constance Schwartzlin-Berberat, Pedro Cornas e Unica Zürn, que demonstram maior firmeza conceitual que a de muitos sãos contemporâneos? Talvez jamais possamos explicar. A obsessão por explicar tudo talvez seja parte da nossa sanidade louca. Eu encerraria voltando à correspondência entre arte e loucura. Becker, através de Rank e seu livro Arte e Artistas (1932), argumenta que o louco é são porque não é capaz de mentir para si mesmo sobre os terrores da vida, e o que separa o artista do louco é que o trabalho artístico o mantém fora dos manicômios. É o seu próprio projeto heróico. Ao pensarmos na vida de Bispo do Rosário e Walser, isso se quebra. Mas resta algo: a intuição de que nossa sanidade está baseada em uma mentiraiada de nós mesmos para nós mesmos. Mas… “não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim.”