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O romancista que matou e tentou transformar o crime em ficção

Estou em Bruxelas, onde passarei os meses de setembro e outubro como escritor-em-residência do instituto Passa Porta: Casa Internacional de Literatura. Na quarta-feira, fui ao primeiro evento organizado pelo instituto desde que cheguei. Estava na companhia dos jovens poetas flamengos Ewout De Cat, Arno Van Vlierberghe e Mathijs Tratsaert. Após o evento, conversava com meus colegas sobre romances policiais e séries televisivas como The Killing e True Detective quando Mathijs Tratsaert perguntou-me se eu conhecia a história do escritor holandês que matou a esposa e então escreveu um livro de “ficção” a respeito. Eu não conhecia. A história é digna de um roteiro ensandecido. Repasso-a para vocês aqui: em 1991, a mulher do escritor holandês Richard Klinkhamer, chamada Hannelore, desapareceu da casa que os dois dividiam no vilarejo holandês de Hongerige Wolf sem deixar rastros. Detalhe mórbido: Hongerige Wolf significa Lobo Faminto. O marido havia, até então, escrito dois livros. O primeiro, um romance, chama-se Gehoorzaam als een hond (“Obediente como um cão”).

woensdaggehaktdagUm ano após o desaparecimento de sua esposa, Richard Klinkhamer visitou seu editor holandês com o manuscrito de seu novo romance, intitulado Woensdag Gehaktdag, em que o narrador descreve, em detalhes, sete maneiras de matar a esposa. Uma tradução possível do título poderia ser “Dia de Carne Moída” ou “Carne Moída às Quartas”, fazendo uma referência ao costume holandês de se comprar carne moída às quartas-feiras, quando os açougues costumam moer as carnes que chegam dos abatedouros às segundas-feiras. Assim, às quartas-feiras a carne moída ainda está fresca. Isso talvez já dê uma ideia do que repugnou o editor, que rejeitou a publicação do romance, considerando-o macabro e repulsivo demais.

E, assim, Richard Klinkhamer se tornou o principal suspeito no desaparecimento de Hannelore. Apenas desaparecimento, pois até então ela não havia sido encontrada, viva ou morta. Sem corpo, sem evidência alguma, a polícia teve que abandonar as acusações contra o escritor. Não foi por falta de buscas. Segundo o jornalista britânico Will Woodward, em seu artigo “The lying Dutchman: how a crime writer confessed to his wife’s murder” para o jornal The Guardian, a polícia holandesa questionou o autor, fez escavações no jardim, trouxe cães farejadores, usou até mesmo um jato F6 da Força Aérea Holandesa com câmeras de infravermelho. Nada. Sem corpo, não há assassinato. E Richard Klinkhamer, quando os boatos correram o país, tornou-se até mesmo uma pequena figura de “culto” nos círculos literários, sendo convidado para entrevistas televisivas. O possível assassino-escritor que matou e então fez disso “literatura”.

Até que, em 1997, Klinkhamer vendeu a residência do casal em Lobo Faminto, digo, em Hongerige Wolf, e mudou-se para Amsterdã. Como é natural ao se comprar uma casa, os novos habitantes decidiram dedicar-se a uma reforma do lugar. Quando a construtora começou a cavar o jardim da residência, os restos de Hannelore Klinkman foram encontrados, enrolados em argila, sob o chão de cimento na cabana do jardim. Preso e condenado por homicídio e ocultação de cadáver, crime que o escritor acabou por confessar, Richard Klinkhamer foi condenado a sete anos de prisão. Foi libertado apenas dois anos mais tarde por bom comportamento. Não conheço as atenuantes que o levaram a ter sentença tão curta e cumprir tão pouco tempo da pena. Mas são estes os fatos. O romance acabou por ser publicado em 2007, e Richard Klinkhamer morreu em janeiro de 2016. Como nos casos reais que inspiram o romancista James Ellroy, o mundo pode ser um grande circo macabro.

Data

sexta-feira 09.09.2016 | 11:25

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