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Elogio à loucura

MaratSadePensei muito estes dias na grande peça Marat/Sade (1964), do alemão Peter Weiss. O título completo é A perseguição e assassinato de Jean-Paul Marat encenada pelo grupo de teatro do hospício de Charenton sob direção do senhor de Sade (original: Die Verfolgung und Ermordung Jean Paul Marats dargestellt durch die Schauspielgruppe des Hospizes zu Charenton unter Anleitung des Herrn de Sade). Meu primeiro contato com a peça foi há quase 20 anos, no Cinusp, com a exibição do filme de Peter Brook baseado em sua clássica encenação da peça em Londres, com tradução para o inglês do poeta britânico Adrian Mitchell. Ambientada em 1808, durante o período napoleônico, o argumento é uma peça dentro da peça, em que loucos do hospício (que realmente existiu) encenam personagens históricas da Revolução Francesa como Jean-Paul Marat, Charlotte Corday, Jacques Roux – e o são Sade. É um lance de mestre de Peter Weiss. Partindo da tradição de Bertolt Brecht e do cabaré político alemão, como o de Kurt Weill, o clima de histeria coletiva de um país tomado por ódio é perfeitamente transposto para aquele hospício. Um país pode às vezes ser um hospício sem muros.

Outros loucos sãos em que pensei nestes últimos dias foram a alemã Unica Zürn, e os brasileiros Arthur Bispo do Rosário e Stela do Patrocínio, que viveram por décadas internados na mesma instituição, a Colônia Juliano Moreira em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro.

Meu nome verdadeiro é caixão enterro
Cemitério defunto cadáver
Esqueleto humano asilo de velhos
Hospital de tudo quanto é doença
Hospício
Mundo dos bichos e dos animais
Os animais: dinossauro camelo onça
Tigre leão dinossauro
Macacos girafas tartarugas
Reino dos bichos e dos animais é o meu nome
Jardim Zoológico Quinta da Boa Vista
Quinta da Boa Vista

— Stela do Patrocínio, in Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Rio de Janeiro: Azougue, 2002).

Talvez tenha sido presciente a decisão do diretor artístico do Festival Artes Vertentes, Luiz Gustavo Carvalho, de dar à edição de 2016 o mote “Elogio à loucura”. Entre os dias 8 e 18 de setembro estarão em Tiradentes, Minas Gerais, vários artistas brasileiros e internacionais ligados a esse tema, como o biógrafo de Nise da Silveira, o autor Luiz Carlos Mello, que fará uma palestra sobre a grande psiquiatra brasileira. Após conviver com ela por mais de 40 anos, ele é hoje Diretor do Museu Imagens do Inconsciente – instituição fundada por Nise da Silveira há 70 anos.

holocaustobrasileiroTambém dará uma palestra a jornalista Daniela Arbex, sobre o processo de escrita do seu livro O Holocausto Brasileiro (São Paulo: Geração Editorial, 2013), que vendeu mais de 70 mil exemplares, e trata da história dos milhares de pacientes internados à força e sem diagnóstico de distúrbio mental, por décadas, no Hospital Colônia de Barbacena, um hospício na cidade de Minas Gerais. A jornalista descreve as torturas, estupros e milhares de mortes de homens e mulheres que simplesmente sofriam de epilepsia ou alcoolismo, eram indesejáveis pela sociedade dos “homens de bem”, como homossexuais, mendigos e prostitutas, ou eram ainda e somente menores grávidas, esposas internadas pelos maridos e moças que haviam perdido a virgindade antes do casamento. Um grande complexo de sete hospitais foi construído nas décadas que viam também o surgimento do Hospital Psiquiátrico do Juqueri, em São Paulo, e da já mencionada Colônia Juliano Moreira no Rio de Janeiro.

Participam ainda os autores Evandro Affonso Ferreira e Victor Heringer, e há uma homenagem a Stela do Patrocínio. O trabalho exemplar de Nise da Silveira retorna nas obras visuais de Arthur Bispo do Rosário e Fernando Diniz, ex-interno do Hospital Psiquiátrico de Barbacena, que também participou dos ateliês de pintura dirigidos pela psiquiatra brasileira. O próprio hospital retorna à luz no registro visual de Luiz Alfredo, que trabalhou para a revista O Cruzeiro, e traz um registro sobre o lugar. Arthur Bispo do RosárioEm teatro, o festival é aberto com a peça “Nos Porões da Loucura”, que, segundo os organizadores, aborda “o tema da política manicomial vigente na sociedade brasileira no século XX”. O ator francês Charles Gonzàles representa três mulheres – Camille Claudel, Teresa d’Ávila e Sarah Kane – e sua história de passagem por insituições psiquiátricas. A atriz Teuda Bara, uma das fundadoras do Grupo Galpão, interpreta a peça “Doida”.

Passamos por um momento tão conturbado, que todos parecem presos a um dia recorrente e repetitivo, numa rotina de hospício, tentando fugir dele e sem tempo para rever nossa História e como chegamos a esse estado. Trabalhos como o de Daniela Arbex, Fernando Diniz e Luiz Alfredo são importantes para conhecermos como a República trata os indesejados há décadas. E, neste momento, retorno a Arthur Bispo do Rosário e Stela do Patrocínio para salvar algumas réstias de sanidade.

Data

segunda-feira 05.09.2016 | 05:56

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