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Parábola do solista e do coro (ou Estudos em Literatura Masculina Branca Heterossexual)

O mundo literário vive aos solavancos entre polêmicas e controvérsias. Ou, no linguajar mimoso das redes sociais, o meio vive de tretas. Algumas tornam-se célebres, a maioria é esquecida ao raiar do novo dia. O que nunca falta é polêmica. Falta por vezes perspicácia, inteligência, elegância – mas a polêmica nossa de cada dia nos é dada. À desta semana: neste sábado, Bolívar Torres publicou o artigo “Livros com protagonistas gays apontam para naturalização do tema” [O Globo, 15.10.2016]. A reação foi, digamos, pródiga em bile. E ainda que possa ter estrapolado, ela é compreensível. Pois o artigo, que não é crítica literária mas mera crítica de costumes, é politicamente um desastre. O que é uma grande pena, pois estou certo de que o autor pensava em contribuir com o debate político. Gostaria de deixar claro, logo neste primeiro parágrafo, que não dirijo aqui um ataque pessoal aos autores discutidos ou a seus livros. Nem sequer a Bolívar Torres, autor de artigos no mesmo jornal que eu pessoalmente li com prazer no passado. Mas, em nome de uma mudança verdadeira de paradigmas culturais, há exortações que precisam ser feitas. E o artigo falha em suas premissas de forma desastrada e desastrosa.

Pois em pleno 2016, um artigo discutindo algo ligado à homossexualidade comete expressões como “opção sexual” e “clichê do gay afeminado” – além do uso de quatro palavras com a raiz em “natura” e prodigiosas declarações sobre “nicho gay” – num país como o Brasil e neste ambiente político virulento. Do nicho ao gueto é um salto de cabrita. O artigo discute, de forma que não é literária, obras de Samir Machado de Machado, Bernardo Carvalho, Daniel Galera, Victor Heringer e Michel Laub, todos homens. Deixando claro que a maioria não é gay. O “gancho”, como se diz em linguagem jornalística, foi terem todos publicado romances com personagens centrais homossexuais. Bolívar Torres escreve que, nestes livros, “o tema surge naturalmente em uma história escrita para um público amplo e irrestrito.”

Ora, por quê? Eram para um público minúsculo e restrito os livros de Oscar Wilde, Marcel Proust, Jane Bowels, Gertrude Stein, Jean Genet, Lúcio Cardoso, Djuna Barnes, Pier Paolo Pasolini, Virginia Woolf, Constantino Cavafy, Meridel Le Sueur, James Baldwin, Muriel Rukeyser, Audre Lorde, Roberto Piva, Al Berto, Manuel Puig, Gerard Reve, Hubert Fichte, Adrienne Rich, Néstor Perlongher, Yevgeny Kharitonov, Langston Hughes, Severo Sarduy, William Burroughs? Estes falharam miseravelmente em levar a “temática” a um público amplo e irrestrito, mas agora O Globo nos traz as boas novas de que o pior passou, pois agora a temática está em mais hábeis mãos? Ou são estes livros agora para um público amplo e irrestrito apenas porque seus autores são vistos como homens heterossexuais?

Gostaria muito de acreditar que se trata, no caso da grande imprensa, de um interesse pela experiência dos milhões de cidadãos homossexuais brasileiros, homens e mulheres que sofrem violências verbais e físicas diárias, mas a impressão que se tem é a de que se tratava de mais uma oportunidade para dar espaço à fina flor da virilidade branca nacional, tão bem representada por Daniel Galera, herdeiro celebrado de gênios da grande literatura masculina branca heterossexual contemporânea que tem por decanos atuais Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, dois escritores geniais e importantíssimos. Se há provocação e leve sarcasmo aqui, prometo que não há ironia. Permita-me qualificar esta proposição: há duas maneiras de se resolver a questão do nicho: se Ricardo Aleixo e Conceição Evaristo fazem literatura negra, então certamente Michel Laub e Daniel Galera fazem literatura branca. Se Veronica Stigger e Zulmira Ribeiro Tavares fazem literatura feminina, então certamente Michel Laub e Daniel Galera fazem literatura masculina. E se Horácio Costa e Silviano Santiago fazem literatura homossexual, então certamente Michel Laub e Daniel Galera fazem literatura heterossexual. Se há algo em que o cânone brasileiro é pródigo, é em literatura masculina branca heterossexual. Ou seja, em literatura não universal – não no sentido que se dá ao termo. Personagens dos contos de Trevisan e Fonseca estão muito distantes da minha experiência e da experiência de outros amigos que são homossexuais, negros e mulheres.

Há outro ângulo, quase “universalista”: se leitores que não são homens, não são brancos e não são heterossexuais são capazes e possuem inteligência e sensibilidade suficientes para ler e apreciar LITERARIAMENTE autores como Rubem Fonseca e Dalton Trevisan (ou Ernest Hemingway e Jack Kerouac), ainda que distantes de suas verdadeiras experiências biográficas, por que será tã difícil ao leitor que é homem, branco e heterossexual ler e apreciar LITERARIAMENTE autores como Lúcio Cardoso e Roberto Piva, ou James Baldwin e Audre Lorde? O que torna a experiência de Kerouac e Hemingway universais, e as de Baldwin e Lorde experiências de “nicho”, esta palavra asquerosa? Escolho Baldwin e Lorde aqui por serem autores de qualidade literária indiscutível, e congregarem em suas experiências não apenas a discriminação por sexualidade, mas ainda por racismo e misoginia.

Se há temas que o artigo “naturaliza”, são a ideia de “opção sexual” – que já deveria estar claro ser incorreta ou incompleta política, epistemológica, psicológica e cientificamente – e a ideia de que o “gay afeminado“ (este adjetivo machista e homofóbico) seria um “clichê”. O artigo pergunta: “a profusão de personagens gays na literatura mainstream brasileira, protagonizando livros que escapam de nichos e rótulos, seria um sinal de que o universo LGBT está se tornando algo natural em nossa produção?” – Permitam-me responder: ora, quem senão a imprensa (dita cultural) brasileira é responsável pelo fato de que, como escreve Bolívar Torres, “até pouco tempo atrás, quem escrevesse sobre homossexualidade corria o risco de ter sua obra reduzida à etiqueta de ‘literatura gay’”? Aparentemente, Raul Pompeia, Mário de Andrade e Lúcio Cardoso não são “mainstream” suficiente. E responsável por isso é até mesmo um artigo bem intencionado como este ao insinuar que é necessário que homens brancos heterossexuais legitimem tais lugares de fala.

E há os problemas que não são do artigo, mas da mentalidade de um par de escritores ali entrevistados. Daniel Galera diz que seu interesse está no “significado de virilidade”. Ou seja, o interesse dele está, no fundo, em si. Não é realmente um interesse pela experiência homossexual. É uma pesquisa sobre o macho. E, é claro, são os autores heterossexuais que precisam “naturalizar o tema”. Claramente, precisam fazê-lo primeiro nas próprias cabeças, antes de se lançar a um jornal de gigante circulação com frases como “clichê do gay afeminado” e “opção sexual”, sem perceber que esta útima coloca quem a diz ao lado de Silas Malafaia, por implicação, e outros que acreditam ser uma “opção sexual” a homossexualidade e portanto passível de “desopção“ ou cura. Quanto à ideia de Vivian Wyler, editora da Rocco, sobre os livros de Gore Vidal e E. M. Forster – de que “sua chancela para a estante geral era a delicadeza da abordagem, mais sensível que explícita, mais insinuada”, ora, esta é simplesmente a diferença entre literatura e os classificados de uma revista pornográfica.

O artigo é politicamente um desastre, e sua única intenção era uma discussão política, já que não há nele algo que possa ser chamada de discussão literária. Veja bem: os homens brancos heterossexuais bradam tanto contra o politicamente correto, de que é a qualidade literária que importa. Mas quando chega a hora de louvar a coragem civil de um autor, será possível que mais uma vez os parabéns têm que ser reservados a homens brancos heterossexuais? Se suas carrerias correm qualquer “risco” por criarem personagens homossexuais, eu garanto que o risco não vem dos cidadãos homossexuais brasileiros. Vem da mentalidade por trás da linguagem que usa expressões como “opção sexual” e “clichê do gay afeminado”. E de quem mesmo é esta mentalidade?

Quanto à questão da alteridade ficcional: deveríamos parabenizar autores masculinos heterossexuais por criarem personagens homossexuais? Alguém parabenizou Clarice Lispector por criar aquela personagem masculina difícil e central em A Maçã no Escuro, ou embaralhar de vez nossas noções de alteridade em A Hora da Estrela, autora que cria um autor que cria uma personagem feminina? Alguém parabenizou o homossexual masculino Mário de Andrade por criar aquela heterossexual feminina em “Atrás da Catedral de Ruão”? Meus parabéns, em termos de alteridade ficcional, iriam antes a autores humanos que criam personagens de outras espécies animais, como Yoko Tawada em Memórias de um urso polar, ou aquela pérola de alteridade que é “Meu tio, o iaueretê”, de João Guimarães Rosa.

E é uma pena ver um crítico tão arguto quanto Silviano Santiago trazendo à baila uma ideia mercadológica espúria como “bromosexual”, quando já conhecemos não apenas o “bromance” como o caráter homoerótico de várias associações masculinas. Que vem literariamente desde a amizade amorosa entre Jônatas e Davi no texto bíblico e a possível lenda do Batalhão Sagrado de Tebas. E este não é o país de Raul Pompeia e O Ateneu? A apresentação da trama entre sexualidade e gênero não precisa destes romances, que imagino sejam excelentes, para mostrar-se complexa no Brasil. Este é o país, além de O Ateneu, de “Frederico Paciência” de Mário de Andrade, Crônica da Casa Assassinada de Lúcio Cardoso, da poesia de Roberto Piva, sem mencionar textos de autores que já não partilhavam da experiência homossexual em suas vidas pessoais antes de Galera e Laub resolverem “naturalizar” o tema com a ajuda de Bolívar Torres, como Lygia Fagundes Telles e Hilda Hilst. Ou aquela pedra no sapato da crítica em termos culturais de gênero e sexualidade que é Grande Sertão: Veredas. Ou seja, a complexidade de nossas identidades de gênero e sexualidade já andava bastante bem cuidada.

Ainda que eu discorde talvez da posição da ficção do outro nesta discussão, o único nas entrevistas que demonstrou sensibilidade para a complexidade da questão, em minha opinião, foi Victor Heringer, por demonstrar consciência sobre a questão política do lugar da fala e por ver que o problema é o de “representatividade no meio literário.” Portanto, o problema primordial é o fato de que a melhor literatura brasileira está sendo escrita por mulheres e homens, negros e brancos, homossexuais e heterossexuais, mas a grande mídia, como neste artigo d’O Globo, cede lugar à fala apenas do homem branco heterossexual, mais uma vez, legitimando sua posição de autoridade sobre qualquer assunto. O problema é o racismo institucional do meio cultural, assim como seu machismo institucional. E, para mim e para outros nesta última treta do meio literário, este artigo é um exemplo de machismo institucional. O que interessa nesta discussão não é uma possível interdição a homens brancos heterossexuais em criar personagens fora do âmbito de sua experiência. Sem dúvida, esta é a natureza da ficção. O problema é que artigos como este tiram de autores homossexuais, negros e mulheres, o seu lugar de fala e o doam de novo e de novo a homens brancos heterossexuais.

Permita-me encerrar esse texto com a parábola prometida no título: Era uma vez, no Ocidente, um tempo em que só falava o homem branco heterossexual. O homem branco heterossexual falava de seus problemas, seus dilemas, seus medos, seus mistérios. E por tanto tempo no Ocidente falou apenas o homem branco heterossexual de seus problemas, seus dilemas, seus medos e seus mistérios, que o homem branco heterossexual começou a acreditar que seus problemas, seus dilemas, seus medos e seus mistérios eram também os problemas, os dilemas, os medos e os mistérios de todos: dos homens negros, das mulheres brancas, dos homossexuais negros, dos homossexuais brancos, das mulheres negras. Ora, ninguém mais falava, além dos homens brancos heterossexuais, e eles jamais ouviam outros problemas, outros dilemas, outros medos e outros mistérios. Passaram a acreditar que o motivo era que os seus problemas, seus dilemas, seus medos e mistérios eram os de todos. Ou seja, universais. Não parecia ocorrer ao homem branco heterossexual que ele só ouvia os seus próprios problemas, dilemas, medos e mistérios, porque todos os outros estavam relegados ao silêncio da senzala, da favela, da cozinha, do inferninho. Então, o homem branco heterossexual não só convenceu a si mesmo que seus problemas, seus dilemas, seus medos e seus mistérios eram universais, como até convenceu muitos homens negros, mulheres brancas, homossexuais negros, homossexuais brancos e mulheres negras que sim, os problemas, os dilemas, os medos e os mistérios do homem branco heterossexual eram também os problemas, os dilemas, os medos e os mistérios deles. Mas eis que as coisas mudaram. Realmente mudaram. Para melhor. No Ocidente tornou-se possível que os homens negros, as mulheres brancas, os homossexuais brancos, as mulheres negras começassem a falar de seus problemas, seus dilemas, seus medos, seus mistérios. Mas o homem branco heterossexual, tão acostumado a ouvir apenas a si mesmo, gritou! E disse: “Mas estes não são os problemas, os dilemas, os medos e os mistérios universais!” Assim, o homem branco heterossexual ofendeu-se e foi ferido – é muito sensível o ego do homem branco heterossexual, pois não teve séculos de experiência de senzala, favela, cozinha e inferninho, que deram aos outros uma pela grossa! –, porque de repente estas novas vozes começaram a insinuar que alguns dos problemas, dilemas, medos e mistérios tidos até então por universais, eram apenas os problemas, dilemas, medos e mistérios do homem branco heterossexual. O que em NADA diminui em angústia estes problemas, dilemas, medos e mistérios, especialmente quando muitos deles são compartilhados. Mas não da mesma forma. Então surgiu naquela terra distante e mítica, o Ocidente, um coro, um coro desafinadíssimo, porque por séculos não puderam cantar juntas estas vozes, cantar e clamar por soluções e remédios a seus problemas, dilemas, medos e mistérios, compartilhados ou muito específicos. Haverá um dia harmonia? Ela é sequer desejável? Pessoalmente, espero que venha um dia uma harmonia a este coro desafinado. Mas posso dizer uma coisa: pessoalmente, espero que não haja regente, e se houver, não admitirei que o regente do coro seja um homem branco heterossexual.

Por fim, queridos, chega de solistas. Vamos cantar juntos, mesmo que desafinados. Como escreveu Carlos Drummond de Andrade, ele próprio que fez declarações tão desastradas e desastrosas sobre a homossexualidade: “O presente é tão grande, não nos afastemos.
/ Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.”

Data

quarta-feira 19.10.2016 | 12:17

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