Dylan, ainda
Sei que para o mundo do jornalismo cultural como é praticado hoje, o gancho passou, o assunto é velho. Mas permitam-me usá-lo para discutir uma questão que não passou. Afinal, diz-se que Bob Dylan sequer aceitou o prêmio de forma oficial ainda, com exceção de uma postagem em sua página, mais tarde retirada. Eu próprio saudei o prêmio a ele na página de cultura da DW Brasil [“Um prêmio a um trovador moderno”], mas dissenso continua sendo uma coisa positiva no mundo. Minha defesa da decisão, em primeiro lugar, não havia sido uma defesa de Bob Dylan – que não precisa dela. Mas da tradição oral, do reconhecimento desta como origem da poesia. Como ironizou o poeta sonoro austríaco Jörg Piringer nas redes sociais, “um prêmio a um poeta com gravações, bem-vindos ao século 20!”. A ironia de ver o autor de “Masters of War” ganhar um prêmio com dinheiro feito com dinamite não me escapou. Mas, afinal de contas, esta ironia ocorre todos os anos quando o prêmio que deve servir de maquiagem para o legado de Alfred Nobel é anunciado, o Nobel da Paz, com exceção do ano, é claro, em que Barack Obama o recebeu enquanto fazia guerra em alguns países.
Portanto, há sim uma certa alegria pelo prêmio a Dylan, da minha parte. Mas não por ele, que não precisa deste prêmio. Continuo acreditando: a poesia ainda é a arte mais popular do planeta, sempre foi e será, mas trata-se aqui da poesia cantada e falada, porque a população do mundo jamais abandonou a tradição oral, apesar das narrativas históricas de velhos acadêmicos. A despeito deles, vai muito bem a tradição oral, ainda que em tantos casos esta separação marcada demais entre poesia-para-a-voz e poesia-para-a-página tenha tornado preguiçosos os poetas cantores ao escrever seus textos, e tediosos demais os poetas escritores ao compor os seus. Dylan não precisa deste prêmio porque seu legado está seguro, seus poemas cantados ainda são… cantados. E é aqui que se torna imperativo perguntar: a Academia Sueca por acaso sabe que o mundo é mais que seu Noroeste, também tem um Nordeste, um Sudoeste e um Sudeste? Outro homem branco do Noroeste recebe o prêmio, compondo na língua do Império, a inglesa? Portanto, me alegro com muitas ressalvas. Sim, eu sei que é apenas um prêmio. Mas tais coisas têm muito poder, poder que poderia ser usado para salvar obras importantes que estamos perdendo.
Vamos esquecer das nações, por um segundo. A ideia de literatura nacional é outra velharia que não me interessa muito. O que me importa é língua. Quantas línguas receberam o prêmio?
Inglês: 27
Francês: 16
Alemão: 13
Espanhol: 11
Sueco: 7
Italiano: 6
Russo: 6
Polonês: 4
Dinamarquês: 3
Norueguês: 3
Chinês: 2
Grego: 2
Japonês: 2
Árabe: 1
Bengalês: 1
Tcheco: 1
Finlandês: 1
Hebraico: 1
Húngaro: 1
Islandês: 1
Provençal: 1
Português: 1
Servo-Croata: 1
Turco: 1
Iídiche: 1
Como se pode ver, as línguas que serviram de arma ao colonialismo europeu estão muito bem cuidadas. A Academia Sueca voltou os olhos para a África quatro vezes e para a África subsaariana, três: em duas delas, premiou escritores brancos da África do Sul, Nadine Gordimer e J. M. Coetzee. Com todo o respeito a Coetzee, mas quem pode argumentar que se tratava de uma escolha incontornável? O único autor negro do continente a receber o prêmio foi Wole Soyinka. E o egípcio Naguib Mahfouz é o único identificável com o mundo árabe. O prêmio a Dylan, outro americano, significou portanto esnobar mais uma vez escritores como o queniano Ngugi wa Thiongʼo, o moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa, a ganesa Ama Ata Aidoo e o somálio Nuruddin Farah, sem mencionar os mortos dos últimos anos, como o sudanês At-Tayyib Salih, o nigeriano Chinua Achebe e a argelina Assia Djebar. Ou, se era hora de premiar a poesia cantada e falada, imaginem o efeito positivo, cultural e político, se Sotigui Kouyaté ou Dan Maraya Jos tivessem sido premiados? Ou o jamaicano Linton Kwesi Johnson, vivo?
Assim, apesar de ter saudado e ainda saudar de alguma forma o prêmio a Dylan, gosto muito de dissenso, e cito aqui outro problema com esta declaração do poeta brasileiro José Rodrigo Rodriguez: “A transgressão das fronteiras entre arte ‘popular’ e arte ‘erudita’ tinha bem mais sentido na época em que o ‘erudito’ não havia se tornado um campo de resistência, atacado por todos os lados pela pressão de dar lucro, pela demanda de ser compreensível e pela exigência de ter ‘relevância social’; lógica falsamente popularizante, embutida em quase todos os programas de incentivo cultural governamentais. Hoje, gestos assim correm o risco de soarem passadistas, repetitivos e de reforçarem a lógica do vencedor.”
Há então em mim uma tristeza e uma alegria inconciliáveis com este Nobel a Bob Dylan. Estamos perdendo línguas e todos os poemas, canções e épicos contidos nelas a um passo assustador. Imaginem quanto Gilgamesh, quanta Odisséia e quanto Popol Vuh perdemos para sempre! Portanto, viva a tradição oral! Este é o mundo do bardo Taliesin, do século 6; é o mundo de trovadores como Arnaut Daniel e sua letra-de-música, aquela maravilhosa sextina; de Minnesängern como Walther von der Vogelweide; mas também de griots como Dembo Kinté e de um poeta épico do século 20 como Avdo Međedović, que levou tanta poesia consigo para o túmulo. Este é o mundo da miríade de poéticas orais dos povos ameríndios, e daquela tradição viva ainda que anônima do “landay”, das mulheres afegãs. Como seria bom se a Academia Sueca usasse o poder que tem para chamar nossa atenção para estas grandes tradições, algumas delas distantes do Noroeste do mundo.