Mais blogs da DW DW.COM

O que fazem as mulheres aos domingos? Quatro poetas contemporâneas da língua alemã e da portuguesa

Domingo em Berlim. No café onde estou, uma criança grita com o pai e o chama por um palavrão. As mães ao redor tapam os ouvidos das outras crianças. No Rio de Janeiro, imagino que homens e mulheres se encaminhem dentro em pouco para as urnas, onde é possível que amanhã um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus se torne prefeito, representante de uma ala da sociedade brasileira que é inimiga confessa de quem quer que se desvie das normas do patriarcado brasileiro. Pensei neste poema da excelente autora contemporânea alemã Monika Rinck, “O que fazem as mulheres aos domingos?”, que traduzi há alguns anos. Ontem vi uma leitura em Berlim, em que as brasileiras Érica Zíngano e Luísa Nóbrega me emocionaram até o caroço. Ofereço esta tradução às grandes autoras das minhas duas terras, a natal e a eletiva, intercalando aqui outros textos de autoras germânicas contemporâneas e de suas contemporâneas lusófonas. A escolha é pessoal, mas transferível.


Quatro poetas contemporâneas da língua alemã e quatro da portuguesa

MONIKA RINCK (Alemanha, 1969)
“O que fazem as mulheres aos domingos?”

a propósito, comecei a desejar maldades.
isso não mais te atinge, mas a mim atinge.
sou atravessada por idades diferentes.
nada me incomoda em qualquer delas.
por isso vejo tudo como é. contornos.
derramada por dentro, encharcada de mel,
veneno, ira, molhada de devoção. ninguém
entende. só as mulheres. elas são boas.
as mulheres são até muito boas. as mulheres
são também muito lindas. elas têm belas almas.
as mulheres usam lindos sapatos. as mulheres
hão sempre de falar comigo. as mulheres ficam
mesmo quando deixam o país. as mulheres aí
estão. sinto nas mulheres um crescente preparo
para a violência. as mulheres se engrandecem
e cruzam as fronteiras. postamos fotos de
nossas bucetas. torna-se indiferente. o que se
toma, o que se dá. não se conforma. escrever.
enviar. continuar. gritar. ser incompreensível. no
cabo fisterra da empatia. estamos ao fim de tudo.
entrementes os sonhos ganham em realismo.
pois os restos dos dias perpetuam-se. impõem-se
para sempre, mesmo quando os conteúdos mudam.
em um sonho você estava em berlim, numa tenda,
em bancadas de cervejaria, ali esmurrei seu peito,
você tombou, chutei então sua maleta, repetidas
vezes, com assombroso ânimo. aí você disse, deixe
disso, não estou aqui por sua causa. do outro
lado da bancada estavam tico e teco, dizendo: é.
ele não está aqui por sua causa. agora comporte-se,
e no sonho tive tanta pena de minha ira tão linda.
você porém era mais jovem e parecia o josé batista.
no sonho de ontem os morenos tornaram-se ruivos
e bochechudos, penugem de cobre e detrás as veias
avermelhadas, mas eram e permaneceram morenos.
aplauso desamparado. na platéia desencadeia-se
o despair, o eu-espéculo a pontapés, algo ainda
gritado e assinalado o tremor de sexo. tudo em
golpes das mãos. carregar como broches as
feridas. fazemos buracos onde nenhum havia
e aí queremos enfiar as picas. tudo é autenticado,
os estenógrafos carregam algibeiras, nas quais pode-se
prender algo, desde que o tenha. mais tarde cai o confete
e a relva artificial. então vamos para casa e nos sentamos
à janela, como se ainda houvesse o romantismo. e tudo
isso num único domingo. é o que fazem as mulheres.
sim, você pode ver a minha. agora é a TUA VEZ!!!!

(tradução de Ricardo Domeneck)
:

“Was machen die Frauen am Sonntag?”
Monika Rinck

übrigens, ich habe begonnen, schlimmes zu wollen.
das trifft dich nicht mehr. aber mich trifft es.
ich werde von unterschiedlichen altern durchquert.
in keinem davon macht mir irgendwas etwas aus.
daher sehe ich alles genau so, wie es ist. konturen.
innerlich ausgegossen, vollgesogen mit gift, mit honig,
mit zorn und vor ergebenheit fickrig. keiner versteht.
nur die frauen verstehen. die frauen sind gut.
die frauen sind sogar sehr gut. die frauen sind
auch sehr schön. die frauen haben schöne seelen.
die frauen tragen schöne schuhe. die frauen
werden immer mit mir sprechen. die frauen bleiben,
wenn sie auch das land verlassen. die frauen sind da.
ich spüre bei den frauen eine wachsende bereitschaft
zur gewalt. die frauen vergrössern sich endlos und gehen
darüber hinaus. wir posten fotos von unseren fotzen.
es wird egal. was wird genommen, was gegeben.
es entspricht sich nicht. schreiben. schicken.
weitermachen. schreien. nicht verständlich sein.
am cap finisterre der empathie. wir sind am end.
indes gewinnen aber die träume an realismus.
denn die tagesreste perpetuieren. sie setzen sich
fortwährend durch, wenn auch die inhalte wechseln.
in einem traum warst du in berlin, da stand ein zelt,
da warn bierbänke, da had ich dir vor die brust gehaun,
du bist gefallen, dann hab deine tasche getreten,
mehrfach, mi entsetzlicher verve. da sagtest du, hör auf,
ich bin doch gar nicht wegen dir hier. da waren dann
auf der andern seite der bierbank nicker und abnicker,
die sagten, genau. er ist nicht wegen dir hier. jetzt lass das,
und ich fands im traum so schad um meinen schönen zorn.
du aber warst jünger und sahst aus wie josef der täufer.
gestern im traum die scharzhaarigen hatten rote haare
und hohe wangen, überall war kupferflaum, dahinter adern
angerötet, aber sie waren und blieben doch schwarzhaarig.
hilfloser applaus. im publikum wird jetzt despair ausgelöst,
das ichbild mit füssen getreten, dazu irgendetwas gerufen
und sexuelles zucken markiert. das ganze sehr handgreiflich.
die wunden trägt man als broschen. wir machen löcher,
wo keine waren, und wollen da mit unsern schwänzen rein.
das alles wir bezeugt, die stenographen tragen halter,
an denen man was befestigen könnt, so man etwas hätte.
später fällt konfetti und kunstrasen. dann gehn wir nach haus
und sitzen am fenster, als gäb es die romantik noch.
und das alles an einem einzigen sonntag. das machen
die frauen. ja, kannst du mal sehen. UND JETZT DU!!!!

§

 

ANA PAULA TAVARES (Angola, 1952)

 

“As coisas delicadas tratam-se com cuidado”

Desossaste-me
cuidadosamente
inscrevendo-me
no teu universo
como uma ferida
uma prótese perfeita
conduziste todas as minhas veias
para que desaguassem
nas tuas
sem remédio
meio pulmão respira em ti
e outro, que me lembre
mal existe

Hoje levantei-me cedo
pintei de tacula e água fria
o corpo aceso
não bato a manteiga
não ponho o cinto
Vou
para o sul saltar o cercado
 

SWANTJE LICHTENSTEIN (Alemanha, 1970)

 

A parede assoberba o palco,
beijos penetram em salitre
e eflorescências enegrecem
dos lábios as mordidas.

Pedras adiam a cada dois dentes
atravessados por sustos e medos
a vista das fendas sussurráveis,
penetram a lama e o temporal.

Frases trementes piscam no cimento,
isópodes vencem guerras couraçadas,
no subterrâneo, sós, carros de compra
e sobre os lagos artificiais os caiaques.

Bigatos oviformes em metamorfose
entre os anões de jardim a massagem
e romances de autocomeçomeiofim,
faltam dedos de zumbi para coçar-se.

Medidas ocultas, alôs e mensagens,
forças centrifugais e ritmos à venda
acariciam cardiocapuzes quebrados,
deslocam carburadores aos amantes.

Muram bocas ao estender-se as mãos,
encharcadas de suor as fotos paralelas,
ponderando lisas e delicadas brincam
de úteros felizes e viúvas de comédia.

Depois engancham listas de compra,
encastelam-se detrás de suas portas
e tudo derrubam por fim ao começo
para que sua timidez desperdice tudo.

(tradução de Ricardo Domeneck)

:

Die Wand läuft über die Bühne
Küsse dringen in Salpeter
und Ausblühungen schwärzen
der Lippen spitze Bisse

Steine verschieben je zwei Zähne
durch Furchen und Ängste hindurch
Sicht auf den durchflüsterbaren Riss
Leim und Schlagregen dringt hinein

Zitternde Phrasen blinken in Zement
Asseln überleben gepanzerte Kriege
im Untergrund stehen Einkaufswagen
und Paddelboote in künstlichen Seen.

Wenden eierförmige Fliegenlarven
zwischen umkämpften Platzhirschen
und automatisierten Linearromanen
es fehlen Zombiefinger putzabkratzend

Versteckte Maßnahmen, Grußbotschaften
Zentrifugalkräfte und Rhythmusgeschäfte
tätscheln die Kapuzenherzen kaputt
verrücken Flüstertüten zu den Liebenden

sie mauern Münder zu reichen sich Hände
schweißnass als Simultangebilde ähnlich
glatt und im zarten Erwägen spielen sie
freudvolles Gebären und lustige Witwe

Am nächsten Tag hakten sie Einkaufslisten
ab verschanzten sich hinter den Toren
und rissen alles nieder endlich am Anfang
zu sein schüchtern alles zu verschwenden.

 

 

ANGÉLICA FREITAS (Brasil, 1973)
“sereia a sério”

o cruel era que por mais bela
por mais que os rasgos ostentassem
fidelíssimas genéticas aristocráticas
e as mãos fossem hábeis
no manejo de bordados e frangos assados
e os cabelos atestassem
pentes de tartaruga e grande cuidado

a perplexidade seria sempre
com o rabo da sereia

não quero contar a história
depois de andersen & co.
todos conhecem as agruras
primeiro o desejo impossível
pelo príncipe (boneco em traje de gala)
depois a consciência
de uma macumba poderosa

em troca deixa-se algo
a voz, o hímen elástico
a carteira de sócia do méditerranée

são duros os procedimentos

bípedes femininas se enganam
imputando a saltos altos
a dor mais acertada à altivez
pois
a sereia pisa em facas quando usa os pés

e quem a leva a sério?
melhor seria um final
em que voltasse ao rabo original
e jamais se depilasse

em vez do elefante dançando no cérebro
quando ela encontra o príncipe
e dos 36 dedos
que brotam quando ela estende a mão

  • ODILE KENNEL (Alemanha, 1967)

    “Pensar sálvia e você”

    Eu penso sálvia quando eu
    vejo sálvia penso folhas de veludo
    verde-cinza pareadas opostas ou
    labiadas ou temperadas e amargas
    ou eu penso em nada nem sálvia nem
    planta nem cheiro pois por tanto
    pensar a sálvia se encontra
    à janela se desencontra na mente pois
    ela para mim não existe mas
    existe para si nada sabe de
    seu nome nada sabe de seu
    existir presume-se que nonada sabe.

    Eu penso você quando eu não
    penso sálvia quando não penso que
    os andorinhões cochilam nas altas
    camadas do ar e nós deitadas
    despertas à janela eu penso
    você e o cheiro amargo
    e temperado infiltra-se no seu
    no meu existir de que nada sabe
    e assim origina-se um desequilíbrio
    existencial na luz pós-meridiana
    pois sabemos sabemos muito bem
    que todo tempo é uma xícara a
    despenhar-se aos céus ou óleo etéreo
    ou a maquinaria da solidão, presume-se.

    (tradução de Ricardo Domeneck)

    :

    “Salbei denken und Du”

    Ich denke Salbei wenn ich Salbei
    sehe denke grüngraue samtene
    Blätter paarweise gegenständig oder
    Lippenblütler oder bitter und würzig
    oder ich denke nichts nicht Salbei nicht
    Pflanze nicht Duft weil vor lauter
    Denken der Salbei wohl vorkommt
    am Fenster doch verkommt im Kopf er also
    für mich nicht existiert er aber
    für sich existiert und nicht weiß wie er
    heißt und nichts weiß von seiner
    Existenz vermutlich gar nichts weiß.

    Ich denke Du wenn ich nicht
    Salbei denke nicht denke dass
    die Mauersegler dösen in den höheren
    Schichten der Luft während wir wach
    liegen am Fenster ich denke
    Du während der bittere und
    würzige Duft in deine und meine
    Existenz dringt von der er nichts weiß
    und so entsteht ein existenzielles
    Ungleichgewicht im Nachmittagslicht
    denn wir wissen wir wissen sehr genau
    dass alle Zeit nur eine himmelwärts stürzende
    Tasse ist oder ätherisches Öl oder eine
    Apparatur der Einsamkeit, vermutlich.

 

GOLGONA ANGHEL (Romênia, 1979)

Porque falta meia hora antes de
tomar o comprimido para dormir,
porque mesmo depois de tanto tempo
fazes de mim o filho com síndroma de Down
de Arthur Miller,
porque escrever não é só abrir cabeças
com o bisturi de Lacan,
e porque um poema não é a Isabella Rossellini
a chorar todos os sábados à noite,
nem o casal encontrado abraçado
na paralisia bucal do Vesúvio.
Porque a poesia não é a ponte Mirabeau
num cartaz de néon de adolescência,
porque hoje, quando ligaste,
era apenas porque te tinhas enganado no número,
porque estou cansado, voilá,
e não consigo evitar a noite,
penso agora em ti, Juliana,
heroína no sentido naturalista do termo,
penso sobretudo no teu arzinho
de provocação e de ataque.

Podias ter sido a Maria Eduarda
do cinema norte-americano,
a rapariga que ajudou a pôr fim à guerra no Vietname,
a Frida Kahlo e o Kofi Annan,
a estátua de Notre Dame.

O teu sentido reformista,
o teu olhar de Eça socialista,
cá está,
tinhas cabeça para embaixadora da boa vontade,
pés para andar nos corredores da ONU,
o feitio da botina, a mania, a despesa.

Mas continuas a dormir no teu cacifo húmido,
de cara para a parede
enquanto 20 repúblicas foram perpetuando
campanhas eleitorais e golpes de estado
nos jornais com os quais limpas os vidros da cozinha.

Coitada, coitadinha, coitadíssima,
permaneces na sala, um pouco pálida e fraca,
mas restituída aos deveres domésticos
e aos prazeres da sociedade!

O feitio da botina, a mania, a despesa,
o cheiro a terebintina.
Ó Juliana Couceiro Tavira, per omnia saecula,
chega para cá a garrafa e o cinzeiro;
temos assuntos por tratar e meia hora de critérios.

§
FRIEDERIKE MAYRÖCKER (Áustria, 1924)

Às vezes por quaisquer movimentos acidentais
roça minha mão sua mão o dorso de sua mão
ou meu corpo enfiado em roupas encosta-se quase sem saber
um piscar-de-olhos em seu corpo de roupa
estes minúsculos movimentos quase vegetais
seu olhar de ângulos e suas pupilas de propósito
vagam no vazio
sua pergunta logo de início interrompida aonde você
viaja no verão
o que você está lendo
atravessam-me o peito em cheio
e através da garganta como uma doce faca
e eu resseco por completo como um poço num verão escaldante

 

(tradução de Ricardo Domeneck)

 

:

 

Manchmal bei irgendwelchen zufälligen bewegungen
streift meine Hand deine Hand deinen Handrücken
oder mein Körper der in Kleidern steckt lehnt fast ohne es zu wissen
einen Augenblick gegen deinen Körper in Kleidern
diese kleinsten beinahe pflanzlichen Bewegungen
dein abgewinkelter Blick und dein Auge absichtlich ins Leere
wandernd
deine im Ansatz noch unterbrochene Frage wohin fährst du im Sommer
was liest du gerade
gehen mir mitten durchs Herz
und durch die Kehle hindurch wie ein süszes Messer
und ich trockne aus wie ein Brunnen in einem heiszen Sommer

 

 

ELIANE MARQUES (Brasil, 1970)

 

a mais negra a mais dura
com sua boca de tomates
amarrada até as unhas

que se vistam desse traje
os braços já sem donos
o café cada vez mais negro
o nó da madeira mais pura

que se vistam desse traje
o lombo de oito cavalos
os lenços mais vermelhos
os oito cravos de chumbo

que se vistam desse traje
os cigarros do coveiro
as raízes ontem camélias
as tortilhas as mais tontas

que se vista desse traje
o cocheiro o mais bêbado
o mais negro o mais lúgubre

e bem antes de anoitecer
e bem antes de amanhecer
que se adone a morte de tudo
do mais antigo e negro
do mais negro e chumbo

Data

domingo 30.10.2016 | 11:40

Compartilhar