Algumas reuniões de palavras que me marcaram em 2016
Esta não é uma lista de melhores, porque é impossível para mim, aqui em Berlim, ter a pretensão de acompanhar tudo o que se produz com a língua oficial no país assim que os trabalhos são lançados. Posso acompanhar melhor a poesia, mas os trabalhos em prosa em geral são lidos mais tarde. Esta é portanto apenas uma lista muito pessoal de algumas obras de arte com palavras que me marcaram neste ano difícil.
PROSA: Vou começar com um romance, porque será o único que vou mencionar: O amor dos homens avulsos (São Paulo: Companhia das Letras, 2016), de Victor Heringer. Venho acompanhando o trabalho do carioca desde que surgiu, e já escrevi sobre sua prosa aqui após a publicação do premiado Glória (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012). Seu segundo romance foi bastante discutido, e estou trabalhando numa pequena resenha. Adianto aqui algumas questões: O interesse parece ter se concentrado principalmente na questão da sexualidade da personagem principal, mas há aspectos do romance que parecem ter ficado algo à margem da discussão, quando o autor tece, com inteligência, uma rede de violências que passa por questões étnicas, religiosas e sexuais, ambientando essa rede de destruições individuais e coletivas num período bastante específico, o da ditadura civil-militar. Quais são os nós que ligam estes fios em teia? Há algo sutil e engenhoso nessa tessitura de violências, uma rede de brutalidade que talvez ainda leve algum tempo para desentranharmos em todas as suas possíveis implicações. O romance merece ainda bastante trabalho crítico de nossa parte.
Prosa lançada há pouco e que espero ler em breve (quando conseguir um exemplar em Berlim): Machado, de Silviano Santiago; Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, de Elvira Vigna; O marechal de costas, de José Luiz Passos; Sul, de Veronica Stigger.
POESIA: Logo no começo do ano, Adelaide Ivánova publicou O martelo (Lisboa: Douda Correria, 2016). Por ter saído apenas em Portugal, foi menos discutido no Brasil do que merecia. É um livro importante para a produção contemporânea, lidando com a violência de gênero de forma potente entre nós, distinta da veia mais satírica de Angélica Freitas, por exemplo. O anúncio de que o livro será lançado no Rio de Janeiro pela Editora Garupa em janeiro de 2017 é uma notícia bem-vinda. Reuben da Rocha passou o ano lançando vários volumes de seu poema-gibi sci-fi em seis fascículos Siga os sinais na brasa longa do haxixe, ligando-o à tradução dos experimentadores não apenas da escrita, mas também da poesia visual em seus aspectos de grafia, diagramação, publicação e distribuição. É uma linhagem que liga o Qorpo-Santo de Ensiqlopèdia ou seis meses de uma enfermidade (1877) um século depois a uma revista como Navilouca (1974), assim como Valêncio Xavier em O Mez da Grippe (1981), Glauco Mattoso em Jornal Dobrabil (1981) ou Sebastião Nunes em Antologia Mamaluca (1988). Outra coletânea de poemas extremamente bonita lançada este ano foi Seiva veneno ou fruto, de Júlia de Carvalho Hansen. Eu o chamei de “milagrinho discreto” em um texto neste espaço, dedicado também à editora que o publicou. Esta mesma editora está ligada a um belo acontecimento do ano que parece estar sendo/ter sido a redescoberta, por um público mais amplo, do trabalho de Leonardo Fróes, um dos grandes poetas vivos do Brasil, neste ano em que perdemos alguns excelentes poetas. Recomendo também o novo livro de Luca Argel, Uma pequena festa por uma eternidade, e que acompanhem o projeto inovador da Azougue com sua Coleção Postal, que já lançou antologias de poetas como Torquato Neto, Roberto Piva, Glauco Mattoso, Guilherme Zarvos e Josely Vianna Baptista.
Poesia lançada há pouco e que espero ler em breve: dois dos mais importantes poetas da década de 1990 lançaram livros novos nos últimos meses, e livros deles são sempre acontecimentos. Ricardo Aleixo lançou, de forma independente, seu Impossível como nunca ter tido um rosto. E Carlito Azevedo lançou, sete anos após seu Monodrama, o esperado O livro das postagens, pela Editora 7Letras.
CANÇÕES: este ano pude ouvir com calma duas bandas brasileiras que me parecem realmente excelentes, a Metá Metá e a Bixiga 70. Acompanhei de longe o trabalho de Ava Rocha e tive a honra de fazer parte, com um texto, do álbum de Sandra X. Mas dois trabalhos lançados especificamente este ano merecem um destaque. Um deles é o excelente álbum de Negro Leo, Água Batizada. É um trabalho impressionante. E, por fim, talvez nada descreva e sirva de antídoto melhor a 2016 do que o álbum de Elza Soares, A mulher do fim do mundo. A canção que dá título ao álbum e especialmente a canção Luz vermelha deveriam ser elencadas entre os grandes poemas do ano. Não consigo tirar da caebça estas palavras: “Telhado agora é porão tira de cima de mim esse pedaço de pedra / Me dá um abraço que o chão se abriu debaixo de nós e até o coxo tropeça / Bem que o palhaço falou que o laço vai se fechar e o laço sempre se fecha / Bem que o anão me contou que o mundo vai terminar num poço cheio de merda.”