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Escrever em outra língua

beckettFiz esta semana uma leitura em Berlim, numa série dedicada aos escritores de língua estrangeira da cidade, mas basicamente formada pela cena literária anglófona. Como a maior parte do público não fala nem português nem alemão, fui convidado a ler em inglês. Não havendo muitas traduções de meus poemas para a língua, decidi ler basicamente os textos que eu havia escrito originalmente em inglês. A experiência me levou a pensar em várias coisas que poderia comentar aqui neste espaço.

Em primeiro lugar, a cena literária internacional em Berlim: sabemos que a cidade atraiu muitos escritores à época da República de Weimar. Paris não monopolizou a atenção literária europeia no entreguerras, mesmo que o tenha feito antes da Grande Guerra. Na década de 20, poetas e prosadores como os ingleses W.H. Auden e Christopher Isherwood passaram por aqui, assim como muitos exilados russos após a vitória bolchevique na Guerra Civil. Um deles, o grande crítico Viktor Chklovsky, escreveu em Berlim um de meus livros favoritos, Zoo, ou Cartas Não de Amor (1922), no qual fala muito sobre a cena de émigrés russos na cidade. Na década de 20, havia dezenas de editoras dedicadas à literatura em língua russa na cidade. Além de Chklovsky, autores como Vladimir Nabokov, Andrey Bely, Marina Tsvetáieva, Vladislav Khodasevich e Nina Berberova viveram em Berlim.

A cena literária internacional hoje, em Berlim, é dominada pela língua inglesa. Mas há pequenas comunidades de autores hispano-americanos, brasileiros e russos, entre muitos outros. No momento, estou organizando uma antologia dedicada a esta cena internacional com textos de autores de diversos países, como Cia Rinne, Hanne Lippard, Travis Jeppesen, John Holten, Christian Hawkey, Pontus Ahlkvist, Luke Troynar, Stine Omar, Pär Thörn, Shane Anderson, Maya Kuperman, Érica Zíngano e vários outros. São poetas de diversos países e línguas. As cenas não se encontram, não há tantas conexões como deveria haver. Alemães não frequentam tanto os americanos, que por sua vez não frequentam os hispânicos, e assim por diante. Ao contrário da cena das artes visuais, que prescinde mais facilmente da língua, os escritores ainda se organizam tribalmente por idioma. O que talvez seja normal, ainda que não necessário.

Mas a segunda coisa que gostaria de comentar, e que dá título a este texto, é o fato de também compor textos em inglês, além do português. Paulo Leminski dizia (e às vezes menciono isso em leituras aqui em Berlim) que “em termos planetários, escrever em português e ficar calado é mais ou menos a mesma coisa.” Quando primeiro cheguei a Berlim, escrever em inglês foi uma necessidade, primeiramente por ter sido convidado por artistas visuais alemães para colaborações, como o fotógrafo Heinz Peter Knes, com quem colaborei algumas vezes, ou o jovem artista visual Philip Zach e, hoje em dia, o músico Markus Nikolaus. Eles precisavam entender o texto, portanto em vez de recorrer a traduções, decidi escrever diretamente em inglês. É claro que estes textos acabam por ser muito diferentes do meu trabalho em português, no qual tenho tanta experiência emocional, mas toda língua é uma caixa de ferramentas diferente, e posso em inglês fazer certos jogos de linguagem que são distintos em português. De certa forma, esta experiência não é muito distinta daquela que tiveram os poetas viajantes da Idade Média, os trovadores, que por viajarem de corte em corte para ganhar seu pão, compunham suas canções (alguns deles) em várias línguas. Isso tudo se deu antes da ascendência da noção de tradição nacional, que se tornou hegemônica especialmente após os românticos. Os poucos textos que compus em espanhol, por exemplo, foram feitos especialmente para performances na Argentina e na Espanha.

No “trovadorismo contemporâneo”, com os poetas-cantores de hoje, é normal que estrangeiros componham em inglês para alcançar um público maior. Ninguém se espanta que Björk ou Karin Dreijer Andersson (The Knife/Fever Ray) escrevam suas letras em inglês, e não islandês ou sueco, respectivamente. Na literatura, apesar da história da literatura do século 20, com autores que trocaram de língua, como Nabokov, ou escreveram seus textos em duas línguas, como Beckett, ainda causa certo estranhamento para algumas pessoas que um escritor trabalhe em mais de uma língua. Mas isso vem se tornando cada vez mais frequente. Pode-se lamentar que a língua do Império, o inglês, se torne ainda mais hegemônica por conta disso, mas um poeta hoje viaja, como há tantos séculos, para ganhar seu pão em cortes distintas, com línguas e públicos distintos. Talvez haja também ganho nisso.

Data

segunda-feira 01.09.2014 | 08:33

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