Amantes perfeitos e aids: exposição
Está em cartaz na Fundação Suñol, de Barcelona, a exposição Amantes Perfeitos. Feita em colaboração com a organização ART AIDS, que se dedica a engajar artistas visuais na luta contra a epidemia, a exposição traz trabalhos clássicos de criadores que foram ativos e retrataram a luta contra o descaso do governo, contra a ignorância da sociedade, contra a covardia de muitos, desde a década de 80, vários deles tendo já sucumbido à síndrome.
Entre as peças bastante conhecidas está a releitura pelo coletivo General Idea de um quadro de Robert Indiana, transformando seu LOVE em AIDS, há fotografias de Peter Hujar (1934-1987), Robert Mapplethorpe (1946-1989) e Nan Goldin (n. 1953), assim como a delicada Untitled (Last Light), de Félix González-Torres (1957-1996). Na tarde em que estive na exposição, um visitante havia acabado de acidentalmente pisar em uma das lâmpadas, quebrando-a, o que, em minha opinião, acabou dando um ar de ainda maior fragilidade à peça, que já tematiza ela própria a fragilidade. A última sala traz Blue (1993), o belíssimo último filme de Derek Jarman (1942-1994), lançado apenas quatro meses antes de sua morte, também por complicações da aids. Como se sabe, o filme apresenta durante seus 75 minutos a tela completamente azul, apenas com o monólogo do pintor que, já cego por complicações advindas da síndrome, vendo apenas formas azuis oblíquas, narra sua vida e condição, em um texto que pode ser considerado um dos poemas mais assombrosos sobre o que a minha comunidade, a homossexual, chama de the plague. O catálogo traz o texto completo de Jarman, que mesmo impresso retém sua força.
Uma descoberta para mim foi o trabalho do espanhol Pepe Espaliú (1955-1993), em especial o vídeo de sua performance Carrying (San Sebastián), de 1992, uma de suas últimas. Trata-se de uma performance, ms também de uma espécie de escultura social, coletiva, na qual Pepe Espaliú, já muito enfermo, descalço, é carregado por um grupo de pessoas que se revezam, pelas ruas de San Sebastián, em um momento no qual muita gente ainda tinha pavor de ter contato direto com pessoas vivendo (e morrendo) com o vírus. É uma performance comovente, poderosa.
Seguindo o conceito da ART AIDS, a exposição traz também peças de quatro artistas contemporâneos, comissionadas para o evento: do americano Robert Gober (n. 1954), da catalã Eulàlia Valldosera (n. 1963), do holandês Willem de Rooij (n. 1969) e da israelense Keren Cytter (n. 1977), esta última, além de artista visual consagrada, também autora de poemas e romances como The Man Who Climbed the Stairs of Life and Found Out They Were Cinema Seats (2005). A exposição vale muito pela reflexão em um momento em que o número de novos casos sobe imensamente, pela oportunidade de ver peças clássicas da arte dos últimos 30 anos e pela força das peças novas, em especial a de Eulàlia Valldosera.
Em vários momentos imaginei peças do brasileiro Leonilson (1957-1993) em partes vazias da fundação, como teriam feito excelente companhia àquelas outras peças tão pungentes. Sempre me espanta que Leonilson não tenha ainda encontrado um amplo público internacional para sua obra, que certamente possui a mesma delicadeza lírica e conceitual de artistas conhecidíssimos, como González-Torres. A epidemia tirou-nos vários artistas no auge de sua criatividade, como o cenógrafo Flávio Império (1935-1985), o pintor Jorge Guinle Filho (1947-1987), o sociólogo, escritor e ativista Herbert Daniel (1946-1992), o violonista Raphael Rabello (1962-1995), o poeta e cantor Renato Russo (19960-1996), ou o prosador Caio Fernando Abreu (1948-1996).
Alguns deles nos deixaram relatos sobre a batalha, como foi o caso de Caio Fernando Abreu, nas suas Cartas para além dos muros, ou Jean-Claude Bernardet, em A doença, uma experiência (1996). Abreu voltaria à crise destrutiva em contos de Os dragões não conhecem o paraíso (1988) e Ovelha negra (1995), e Herbert Daniel foi o primeiro a trazer para a ficção uma personagem vivendo com a infecção, em Alegres e irresponsáveis abacaxis americanos (1987), como escreve o crítico Fernando Oliveira Mendes em seu seu ensaio “A Literatura encontra o vírus da aids” (Revista Itinerários, Araraquara, número 13, 1998). A epidemia faz também sua aparição em Uma história de família (1992), de Silviano Santiago, e Aberração (1993), de Bernardo Carvalho.
Com os novos tratamentos, as novas gerações parecem não perceber o horror que foi aquela época. Como disseram com palavras semelhantes duas mulheres que perderam muitos de seus amigos para a praga, a escritora Fran Lebowitz e a fotógrafa Nan Goldin, morria-se como se numa guerra. E o documentário How To Survive a Plague (2012), de David France, mostra o que foi a luta, numa guerra não apenas contra a doença, mas também contra o governo e a sociedade.
O catálogo da exposição Amantes perfeitos é dedicado a Joep Lange e Jacqueline van Tongeren, dois dos maiores especialistas na doença, que morreram na queda do voo da Malaysia Airlines sobre a Ucrânia. É possível que a organização ART AIDS esteja coberta de razão ao esperar que artistas (e escritores) tratem da praga que, por ignorância muitas vezes, segue matando mundo afora.