Dedo de prosa sobre a prosa de Victor Heringer
Escrevi sobre o trabalho de Victor Heringer pela primeira vez após o lançamento de sua coletânea de poemas Automatógrafo (Rio de Janeiro: 7Letras, 2011), e anunciava no artigo (“Victor Heringer”, revista Modo de Usar & Co., 1/1/12) que o autor trabalhava naquele momento em seu primeiro romance, que viria a ser lançado pela mesma editora no ano seguinte sob o título Glória (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012). Nascido no Rio de Janeiro em 1988, ele passou a fazer parte do grupo de jovens autores brasileiros cujo trabalho acompanho com muito interesse, todos nascidos no período de transição democrática pós-ditatorial, como os baianos Rodrigo Damasceno (1985) e Ederval Fernandes (1985), o pernambucano Philippe Wollney (1987), o paulistano William Zeytounlian (1988), e os também cariocas Ismar Tirelli Neto (1985), Luca Argel (1988) e Italo Diblasi (1988). No entanto, de todos esses citados, Heringer é o único que se dedica com a mesma intensidade tanto à prosa quanto à poesia, além de a seu trabalho sonoro, em vídeo e desenho. Mas a história dessa bizarra mutação geracional dos 1980 sob José Sarney é assunto para outra hora.
Sempre acreditei que um crítico deva evitar o discurso das carreiras promissoras ao tratar do trabalho de um autor iniciante. Cede-se à tentação como se tomado pela vontade de comprar uma apólice de seguros no hipódromo, caso o cavalo eleito perca a corrida. No Brasil, isso se manifesta na inflação bibliográfica de certos autores que mantêm apenas sua importância histórica no cânone, impedindo que autores marginais, porém de influência entre os escritores mais jovens, sejam mais amplamente discutidos. Um autor deve ser discutido por aquilo que publicou, nem por uma futura possível obra nem por uma obra que pode ter sido importante no passado mas não mantem a mesma qualidade no presente.
Tivesse eu feito a promessa da promessa ao falar de Victor Heringer em 2012, poderia estar me parabenizando agora, e não me refiro apenas ao Prêmio Jabuti que o autor carioca recebeu por seu romance Glória no ano passado. Victor Heringer é um dos autores que leio com maior prazer no cenário brasileiro contemporâneo, e seus textos ganham cada vez mais elegância e estilo. Sua coletânea de estreia trazia belos poemas, sobre os quais me debrucei, como “ode à genética”, “Intervalo comercial entre duas comédias” e “Oração”, e desde então saíram o ótimo Glória, justamente premiado, e mais recentemente o conto-livro Lígia (2014), lançado na coleção Formas breves, dirigida por Carlos Henrique Schroeder. Sua coluna quinzenal Milímetros na revista Pessoa demonstra também, a cada vez, seu talento narrativo, e jamais a deixo de ler.
Isso já vinha prefigurado (deixe-me chamar de promessa uma vez), nos excelentes textos memorialísticos e crônicas que Heringer publicava em sua página pessoal, como “O segredo de Cosme quem sabe é Damião”, “Por uma história universal da perna” e o ótimo “Terrúa: bilhete para Manuel Bandeira”, um dos textos mais bonitos que li sobre e durante os protestos de junho e julho de 2013.
“Manu, ontem eu vi a baleia. Lembra a tua baleia? Aquela tua crônica para o semifinado Jornal do Brasil, “A baleia gigante”. Pois então, ontem a vi. Foi de relance. Eu estava perto do palácio Guanabara, acompanhando um protesto dos moços e moças libertários, quando estourou um coquetel molotóve lá na fileira da tropa de choque e tiro & pedra para tudo quanto foi lado. Corri com a moçada e os jornalistas.” (Victor Heringer, “Terrúa: bilhete para Manuel Bandeira”, in Consideração e aviso, 24/07/2013)
Pesquisador obcecado pela história das ruas do Rio de Janeiro e também de Nova Friburgo, de onde vem sua família de imigrantes alemães, Heringer traz a sua prosa um conhecimento das ruas e seu léxico como se vê em poucos autores. Não se trata aqui de apostas canônicas, especialmente porque não acompanho a prosa contemporânea brasileira com a atenção que exijo de mim, como crítico e editor, ao acompanhar a poesia. Mas Glória foi um dos melhores romances brasileiros que li nos últimos tempos, escrito com elegância e inteligência, assim como creio ser um dos únicos trabalhos literários recentes a tratar de um fenômeno pujante da República: a ascenção dos cultos neopentecostais, na figura de uma das personagens da família Costa e Oliveira retratada no romance, o pastor Abel. Eu o chamaria de Aliosha dos trópicos, para referir-me a outra tríade de irmãos, se a personagem criada por Heringer não me parecesse mais perturbadora e despertasse em mim bem menos simpatia que meu irmão favorito no romance de Dostoiévski.
Além disso, ao contrário de certos autores da autopromocionada Geração 90, a cultura digital não comparece no livro apenas através de truques como a mímica de conversas tolas de janela de bate-papo, mas em uma tentativa inteligente de retratar como as redes sociais vêm transformando a maneira como as pessoas se relacionam. E o livro traz ainda vários quitutes para os que se interessam por certas estratégias da ficção contemporânea, como a metaficção, o livro dentro do livro, o autor real e o autor inventado, mas tudo narrado com verdadeiro prazer pela linguagem, que é o que por fim me interessa. Victor Heringer tem verdadeiro talento para o picaresco e satírico, ligando-o a outros autores cariocas, como Manuel Antônio de Almeida (1831-1861) e Lima Barreto (1881-1922). Incluiria ainda o contemporâneo exato de Barreto, João do Rio (1881-1921), se a prosa de Victor Heringer não me parecesse bem mais enxuta que a do dândi carioca.
Seu último trabalho publicado, o conto-livro Lígia volta a esse terreno que mais é fronteira entre o trágico e o cômico, já que todo susto tem um pouco de riso. Os velhos imigrantes. As taras de Copacabana. As taras escondidas de Copacabana, pelas quais só alguns autores perambulam, como Nelson Rodrigues.
“O Sr. Mendes diz que não sonha desde que perdeu o olho direito. Era o direito que sabia sonhar. O esquerdo não viu tantas coisas terríveis, ele me disse uma vez. Nunca perguntei que coisas seu olho direito tinha visto. O que o esquerdo viu, eu sei: o Rio de Janeiro, a praia de Copacabana, Lígia.
A TV sempre ligada. Estamos sentados na sala, ele na cadeira de rodas, eu no sofá, assistindo novela. Lá fora, Copacabana vai baixando a noite. A cidade é como os velhos, não tem a sorte de morrer jovem. Vai crescendo, inchando, criando becos, caroços cancerígenos, avenidas, vielas, churrascarias. Uma hora, até os moradores mais antigos se perdem nela, como o Sr. Mendes se perde em mim.” [Victor Heringer, Lígia (e-galáxia, 2014)]
Sim, Victor Heringer dá seus sorrisos por nossas taras, escondidas enquando declaramos nossos votos secretos nas redes sociais da República. Foi anunciado há pouco que seu novo livro será outro romance, intitulado O amor dos homens avulsos. Em sua página pessoal, Victor Heringer pede a seus leitores que o informem sobre o nome do primeiro amor de cada um. É para o livro. Respondi há algum tempo, já não me lembro se digitei Erika ou Sara. A quem ainda não leu Glória ou Lígia, espero que este artigo sirva de recomendação entusiasmada. Era minha intenção.