Marília Garcia e um teste de resistores
Eu me lembro de uma conversa com Marília Garcia certa manhã, em um café de Bruxelas, onde estávamos para participar do festival Europalia, que tinha o Brasil como convidado aquele ano. Ela me contava uma anedota. Ao visitar o poeta francês Emmanuel Hocquard, que Marília Garcia vem traduzindo no Brasil de forma pioneira, ele perguntou a ela quais outros poetas franceses ela apreciava. Quando ela respondeu que lia Nathalie Quintane, que havia sido lançada no Brasil em tradução de Paula Glenadel pela coleção Ás de Colete no volume Começo: autobiografia (SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2004), o poeta francês respondeu: “Mais ça c’est pas de la poésie” (Mas isto não é poesia). Ficamos ali algum tempo, conversando sobre a declaração de Hocquard, justo dele. Eu ri na hora, e comentei com ela que certa vez, conversando com um poeta brasileiro justamente sobre Hocquard, o brasileiro havia dito a mesma coisa do francês: “Mas isto não é poesia.” Naquela manhã, decidimos que algum dia organizaríamos um volume de ensaios, convidando poetas brasileiros a meditarem sobre isso. O mote seria a história da declaração de Hocquard sobre Quintane, unida à do brasileiro sobre o próprio Hocquard. Mais ça c’est pas de la poésie. Ok. Acabou a discussão?
A pergunta final é algo que sempre me vem à mente quando ouço essa frase, bastante frequente entre poetas sobre outros poetas: “Mas isto não é poesia”, como uma cartada final, um às no colete, um xeque-mate. Eu sempre respondo: Ok, aceitemos por um segundo que não seja poesia. Acabou a discussão? É o quê, então? E o que quer que seja, consequentemente não presta porque não é poesia?
No ano seguinte, Marília Garcia lançou o livro engano geográfico (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012), no qual relata sua viagem e seu encontro com Emmanuel Hocquard, mas não a anedota. Ao ler o livro, tive a ideia de que um dia começaria um texto sobre o trabalho de Marília Garcia com a anedota da declaração de Hocquard sobre Quintane.
Em setembro deste ano, Marília Garcia lançou seu mais novo livro, Um teste de resistores (Rio de Janeiro: 7Letras, 2014). Carreguei o livro comigo em minha viagem pelo Brasil, abindo-o na primeira página já com a ideia de escrever sobre ele e resgatar aquela anedota. Qual não foi minha surpresa quando vejo que a história já havia sido incorporada pela própria autora no livro. Na verdade, o livro foi aos poucos desarmando por completo meu discurso crítico, por torná-lo supérfluo. As referências que eu pensava fazer sobre o trabalho da carioca iam surgindo na textura do texto, seu apreço pelo poeta norte-americano Charles Reznikoff (1894-1976), que ela vem traduzindo, pelo artista argentino Guillermo Kuitca (n. 1961), os franceses Henry Deluy (n. 1931) e o próprio Hocquard. O “mas isto não é poesia” se torna o motor do próprio texto de Marília Garcia, uma espécie de desafio, afronta, resposta, fazendo o que para muitos não será poesia. Realmente, todos os dispositivos clássicos da poesia estão ausentes: não há metáfora, não há métrica, não há ritmo constante ou marcado, não há assonância, não há aliteração. Os textos baseiam-se em dispositivos que reconhecemos como estruturais da prosa: a metonímia, a sinédoque.
A autora vinha valendo-se de uma forte narratividade desde seu primeiro livro, 20 poemas para o seu walkman (SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2007), mas em seu novo livro, como no anterior, ela leva isso ao extremo. A prática não é de todo desconhecida no Brasil. John Cage usa o recurso em todos os seus livros, especialmente em A Year from Monday: New Lectures and Writings (1967) e M: Writings ’67–’72 (1973), mas Cage é autor consagrado. Em um autor mais jovem, aceitar certos riscos é, com o perdão da tautologia, mais arriscado. A prática está presente também, de forma ainda mais clara, no trabalho do norte-americano David Antin e seus talk poems e, no Brasil, poderíamos pensar na prosa porosa de Augusto de Campos e seu O Anticrítico (1986). Mas caio, novamente, nas referências de autoridade.
A verdade é que este texto, como disse, é supérfluo. Gostaria de poder publicar apenas um recado, dizendo: “Leiam Um teste de resistores, de Marília Garcia. O livro diz-se.” Pois se trata de um livro, em minha opinião, que instrumentaliza, arma o leitor para compreendê-lo. O livro diz o que faz e faz o que diz. Se Marília Garcia lança mão da quebra-de-linha, não é para dizer ao leitor “Olá, isso é poesia”, mas porque a noção de corte está presente no livro, a noção da memória e sua narratividade como ilha de edição. Os cortes e os espaços em branco, para aqueles que diriam que se trata “apenas” de prosa entrecortada, ali surgem porque é assim que contamos a nós e a outros nossas histórias: entrecortadas, editadas.
O livro é um exemplo do que venho chamando de “poética de implicações”, e que é um elemento forte no trabalho (por algum motivo que não nos cabe discutir aqui) em sua maioria de mulheres, hoje, no Brasil: Marília Garcia, Juliana Krapp, Veronica Stigger, Érica Zíngano… cada uma à sua maneira. É obra aberta no sentido de dizer algo querendo dizer o que diz, mas também incitando o leitor a pensar nas implicações do que é dito. E, como se trata de textualidade, de linguagem apresentada como texto, incita a pensar nas implicações do que foi dito e feito. A crítica norte-americana Marjorie Perloff falou em “poética da indeterminação”, discutindo Cage e Antin no ensaio “’No More Margins’: John Cage, David Antin, and the Poetry of Performance”, presente no livro The Poetics of Indeterminacy (1983). Trata-se realmente de poesia e performance, já que os textos de Marília Garcia foram escritos para “falas”, como vejo muito aqui na Europa também, entre poetas que apresentam seus trabalhos basicamente em galerias, muitos sem publicar, como os britânicos Hanne Lippard e Tris Vonna-Michell.
Talvez tudo o que eu quero dizer aqui seja apenas: leia o novo livro de Marília Garcia. Se a você parecer que isso não é poesia, deixe-me responder de antemão: Ok. Acabou a discussão?