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Inconstitucionalissimamente

Tramita no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda à Constituição conhecida como PEC 215/2000, de autoria do ex-deputado Almir Sá do PPB de Roraima, descrita na página da Câmara dos Deputados como visando a “incluir dentre as competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e a ratificação das demarcações já homologadas; estabelecendo que os critérios e procedimentos de demarcação serão regulamentados por lei”. O projeto pretende mudar o artigo 231 da Constituição de 1988, que regulamenta os direitos do indígenas brasileiros sobre suas terras: “Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” Vale reler este artigo da Constituição, em todos os seus parágrafos, em especial diante dos desrespeitos a ele nos últimos anos.

Portanto, a PEC 215 pretende fazer passar ao Congresso Nacional e ao Poder Legislativo a demarcação de novas terras indígenas, decisão que hoje cabe ao Executivo. Mesmo permanecendo com os órgãos responsáveis do Poder Executivo, como a Fundação Nacional do Índio (Funai), os estudos prévios sobre as demarcações, o debate, votação e decisão final ocorreriam no Congresso Nacional. Com  influência maciça da bancada ruralista hoje no Congresso, alguns deles tendo já demonstrado seu racismo raivoso contra os indígenas, esta proposta significaria certamente o fim das demarcações. A bancada ruralista vem tentando votar esta proposta ainda este ano, de portas fechadas. Nesta terça (16/12), outra sessão foi cancelada e mais uma vez houve violência contra indígenas perante o Congresso Nacional.

Não sou jurista, nem filósofo do Direito. O que esta discussão estaria fazendo em um espaço dedicado à literatura? Deixem-me falar sobre o que me impele a escrever sobre isso, tocando no que vejo ser a responsabilidade política de um escritor.

A matéria-prima de escritores é a linguagem e sua encarnação na língua de sua comunidade. Trata-se, portanto, de propriedade comum, compartilhada. Aí reside parte de suas responsabilidades, talvez menos sociais que comunitárias. O escritor não vai à esquina e compra tela, estica-a na moldura e então a preenche com tintas compradas. Sua matéria prima é dada a ele por sua mãe, e sua inserção em uma comunidade começa já com o “Nana, nenê, que a Cuca vem pegar.” Por acreditar que o trabalho literário tem consequências sobre a língua (propriedade pública), sinto que o escritor não pode simplesmente estar alheio às implicações do que faz com a língua, ou ao contexto em que exerce sua atividade.

É na linguagem e sua encarnação como língua que muitos crimes começam a ser preparados por governos: ditadores, reis, ou presidentes, através de seus legisladores. E não seria um escritor, um poeta, o melhor equipado a perceber isso, talvez antes de outros? Até mesmo o extermínio de povos não se dá da noite para o dia, é preparado aos poucos, por uma série de leis que visam primeiro a destitui-los de seus direitos civis, para então destitui-los de seus direitos humanos. Isso ocorreu no passado.

Se a língua une, por tudo o que nos permite compartilhar, ela também é usada para separar. Qualquer poeta deveria estremecer ao pensar nas implicações do xibolete (schibboleth), o costume de usar uma palavra específica para identificar, através de sua pronúncia, aquele que pertence ao grupo e o que não pertence, tendo sido usado já em guerras para “desmascarar” estrangeiros e minorias dentro do território. O que acontecia com estes estrangeiros ou minorias depois, deixo para sua imaginação.

A questão das responsabilidades políticas de um escritor é polêmica, mexe com o brio das pessoas. Muitos diriam que um escritor não deve se misturar com estas questões, sob o risco de atrapalhar a qualidade de seu trabalho “literário”. O poeta francês Stéphane Mallarmé (1842-1898) escreveu que o papel do poeta é “donner un sens plus pur aux mots de la tribu”, ou dar um sentido mais puro às palavras da tribo. Muito já foi feito dessa declaração, até mesmo a defesa de um absenteísmo necessário por parte de poetas das questões mais práticas da sua comunidade, vistas como mesquinhas. Contrário ao sentido que eu, pessoalmente, tomo para mim.

Um exemplo recente: o que os dois principais partidos políticos da República têm feito com o verbo mudar. Temo que mais uma ou duas eleições presidenciais como as últimas e este verbo estará danificado a ponto de se tornar irreconhecível. Serão necessárias duas gerações de bons poetas para restitui-lo a seu sentido original.

A palavra que dá título a este artigo, como se sabe, é considerada uma das mais longas da língua portuguesa. Palavra que poderia ser bastante frequente na República Federativa do Brasil. Advérbio de modo, estes modos conhecemos bem. A Constituição de 1988 é a sexta do país, já que certamente não chamaremos de Carta Magna a Emenda Constitucional nº 1, de 1969. E temos aqui um exemplo de como certas palavras podem ser usadas para roubar, já que o documento de 1969 não emendava, mas rasgava o documento que pretendia remendar.

Quando se trata da Constituição, o maior documento da comunidade, temos que tomar muito cuidado com o que se esconde por trás de palavras como emenda. Para que não se permita jorrar mais sangue em nome de um documento que pretende proteger, prevenir e cicatrizar.

Mas, no Brasil, sequer entendemos ainda os significados de palavras como democracia e República. Somos um país onde público não parece ser compreendido como pertencente a todos, mas a ninguém. Daí a transformar o nosso em meu, trata-se de um pulo.

Somos uma democracia representativa. Os funcionários eleitos hoje no Congresso ou no Palácio do Planalto são pagos para representar, mas isso não significa um cheque em branco. Como cantou Gal Costa, é preciso estar atento e forte. É preciso debate, para que grupos não rasguem trechos da Constituição que vão contra nossos interesses privados, pessoais. Em minha opinião, um exemplo é a proposta mencionada no início deste texto, a Proposta de Emenda à Constituição nº 215-A, que representa um perigo à Carta Magna do país, e que, caso passe, poderá vir a permitir que se pilhe ainda mais os direitos constitucionais dos povos indígenas no território.

Não sou jurista, não sou filósofo do Direito, já disse. Há escritores no Brasil melhor equipados para esta discussão, como Pádua Fernandes e Marcus Fabiano Gonçalves. Mas, como escritor que passa o dia com as mangas arregaçadas e as mãos na língua, tentando manuseá-la, sinto a necessidade de manter-me atento a quando ela está sendo manipulada. Somos bombardeados por linguagem e língua 24 horas por dia. Até em nossos sonhos são linguagem e sua encarnação na língua em ação.

Na imprensa, nos comerciais, no Diário Oficial da União, nossas vitórias e desastres começam ali: na língua. E se há hoje uma palavra na língua portuguesa que precisa não ter um sentido mais puro, mas ter seu sentido protegido, é constituição e suas derivadas. Como inconstitucionalissimamente.

Data

quinta-feira 18.12.2014 | 08:51

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