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Sobre o “Jóquei” de Matilde Campilho

jóqueiPoucos livros de poesia em língua portuguesa nos últimos anos foram recebidos com a atenção e o entusiasmo que se dedicou a Jóquei (Lisboa: Tinta-da-China, 2014), de Matilde Campilho. Sim, é certo que a Poesia Reunida de Paulo Leminski entrou para a lista de mais vendidos, e a felicidade de muitos leitores foi grande com a reunião da obra poética de Ana Cristina Cesar em um único volume, ambos pela Companhia das Letras. Mas são autores de culto já há algum tempo. Matilde Campilho era uma estreante, tendo surgido no cenário com alguns poucos poemas publicados em jornais e revistas, todos no Brasil. Em Portugal, a recepção foi tonitruante. Em poucos meses, o livro chegou à terceira edição, e a autora foi convidada de programas de televisão, rádio, tendo o livro comentado pelos principais jornais dos dois lados do charco Atlântico.

As expressões de críticos eram de pasmo, surpresa. No jornal português O Público, o crítico João Bonifácio chegou a chamar a autora de “meteorito” (“A montanha privada de Matilde Campilho”, O Público, 1.8.2014). A metáfora me pareceu estranha, já que meteoritos não são exatamente bem-vindos, e tendem a espatifar-se no chão, causando um ou dois estragos. No mesmo O Público, o crítico Gustavo Rubim escreveu uma pequena nota, dizendo: “Esta coisa é certa: nenhuma geração de poetas nos prepara para a geração seguinte. Fôssemos acreditar em certo recato, pacato até na rebeldia, que por aí imperou em livros e revistas, e o vento de pura selvajaria que sopra na poesia de Matilde Campilho ser-nos-ia absolutamente ininteligível. Jóquei é um acontecimento precioso em língua portuguesa, nem vale a pena dizer menos.” E uma palavra parece recorrente nos comentários ao livro: alegria, a alegria da autora e seus poemas, diagnosticando esta como o motivo para a paixão de tantos leitores pelo trabalho de Matilde Campilho. No Brasil, a última autora portuguesa a gerar esta atenção havia sido Adília Lopes, quando Carlito Azevedo publicou sua Antologia (São Paulo/Rio de Janeiro: CosacNaify/7Letras, 2002), na década anterior.

Parece difícil filiar a poesia da autora, e isso não deixa de ser sorte para Campilho, que escapou em grande parte da obsessão, de certos críticos (eu, muitas vezes, entre eles), de encontrar pai e mãe para novos poetas. Ao mesmo tempo, essa tentativa de fazer sua poesia pairar como sem âncora na poética lusófona contemporânea não me parece completamente correta. Talvez Rubim tenha apontado um caminho correto ao posicionar a obra da autora contra o pano de fundo das publicações dos últimos anos. Creio que ele se referia tão-só à poesia portuguesa, mas não deixa de fazer sentido também em relação à brasileira.

Portugal conta hoje com excelentes poetas. Sou um admirador do trabalho de Miguel Martins, assim como de António Barahona, Rui Pires Cabral, Inês Dias e vários outros. Mas são autores de outra geração, e talvez haja realmente algo diferente acontecendo agora, cada qual à sua maneira, no trabalho de poetas como Golgona Anghel, Raquel Nobre Guerra… e Matilde Campilho, foco deste artigo.

Tentarei elaborar algumas ideias a seguir, como poeta e crítico brasileiro, o que certamente condiciona minha leitura. Não vou retomar a narrativa sobre sua biografia nos últimos anos. Sabe-se, isso foi mencionado em todos os artigos, que Matilde Campilho, nascida em Lisboa em 1982, vive há alguns anos entre sua cidade natal e o Rio de Janeiro. A influência disso sobre sua escrita foi também discutida, seu português lisboeta-carioca, o uso de construções sintáticas que se mesclam entre os infinitivos e os gerúndios, expressões dos dois países casadas muitas vezes no mesmo poema. Isso certamente tem um impacto sobre sua linguagem e portanto sobre seus leitores, um impacto de estranhamento, que funciona poeticamente nos dois territórios lusófonos.

Mesmo antes de publicar – como nos acostumamos a entender publicação, ou seja, botar no papel, Matilde Campilho já havia publicado (tornado públicos) outros textos, com sua voz, em vídeos. Isso é um fator importante. Ainda que os textos dos vídeos não tenham entrado no livro, com a exceção de “Conversa de fim de tarde depois de três anos no exílio”, a composição deles, seja qual for o suporte de publicação, parece-me fincada na tradição oral. No seu manifesto “Personism”, Frank O’Hara – com quem creio que a portuguesa aprendeu algumas coisas, escreve: “While I was writing it I was realizing that if I wanted to I could use the telephone instead of writing the poem.” Há no trabalho de Campilho um tom de conversação, de diálogo, e dois dos poemas chegam a assumir esta forma [“Obituário de J. Anderson Pritt, pela mão da viúva” e “Quando (A) e (B) se sentam no degrau da banca de jornal para conversar sobre pormenores supradimensionados”]. Mas ainda assim eles não são mera conversa, linguagem transparente, apenas funcional em sua transmissão de uma mensagem. Se eu tentasse aqui uma filiação na tradição, diria que a poesia de Campilho é bárdica, se me permitem usar a expressão altissonante. Trata-se de algo que perpassa grande parte da poesia ocidental, de Taliesin no século 6 a Ginsberg no século 20.

Quando em um verso ela diz algo simples, direto, até comum, mas logo em seguida o liga a algo que jamais esperaríamos em sequência, ela está lançando mão de uma forma eficiente de iluminar o comum com o incomum, e vice-versa. É como o “I do this, I do that” de O’Hara, mas a experiência logo é transformada pela imaginação. O texto pode surgir de uma ocasião banal, mas a autora logo o conecta a outras experiências, e tudo se torna experiência de linguagem. Pois, a isso tudo, une-se o talento fanopaico invulgar de Matilde Campilho, sua poesia que é fortemente imagética, gerando suas surpresas através de metáforas e símiles que causam um sobressalto, não por qualquer surrealismo, mas por ser capaz de fazer conexões, em nossa mente, de coisas que não teríamos imaginado irmanadas. No entanto, sem retirá-las do mundo onde e tal qual são e estão. Se seus poemas nascem de impactos recebidos em sua vida, a imaginação da autora imediatamente parece fazer com que ela os conecte a impactos outros, sobre outros, ligando a História geral à sua história pessoal. E é isso que difere sua poesia da de alguns outros autores que partem de sua biografia. Muito diferente do que por vezes se chama de “poesia do cotidiano”, Campilho não está buscando a beleza do simples, do diário, do pessoal, apenas por serem simples, diários, pessoais. É aqui que eu tentaria classificar o diagnóstico de alegria em sua poesia. Não me parece tanto alegria quanto certo espanto. Matilde Campilho é uma poeta que ainda se espanta, e o confessa com candor, em meio a um tempo que espera demonstrações de inteligência através da ironia, do sarcasmo, de certa contemplação fria do mundo. Mas a contemplação da portuguesa jamais é fria. É por isso que eu diria: não alegria, mas espanto. E esse espanto parece-me eminentemente religioso. Há em sua poesia uma sensação, mesmo que tênue, de algo sagrado que sobrevive. Ainda que ela não faça aparentes voos ao transcendental, eu diria que sopra pela poesia de Matilde Campilho uma certa reverência pelo mundo como local em que algo, mesmo que tangível e visível apenas por segundos, revela-se. Se alegria, então aquela que Clarice Lispector descreve em sua advertência aos possíveis leitores de A Paixão segundo GH (1964): a alegria difícil.

Pois, ao ler Jóquei, de Matilde Campilho, não vejo ingenuidade em seu candor. É um risco que ela assume, como escritora. Pessoalmente, sendo também poeta, às vezes mal consigo crer que ela tenha escolhido começar um poema da forma como começa alguns deles. Mas conforme a leitura do texto avança, os choques entre o banal e o maravilhoso vão se acumulando, gerando um efeito bastante singular. Não é fácil escrever sobre sua poesia, pois ela parece caminhar na corda-bamba entre o que é e o que não é com um equilíbrio delicado. E fica-se com medo de distraí-la. Pensei nas expressões de Federico García Lorca em sua conferência “Teoria e prática do duende”, quando diz “O anjo deslumbra, mas voa sobre a cabeça do homem, está acima, derrama sua graça, e o homem, sem nenhum esforço, realiza sua obra, ou sua simpatia, ou sua dança. (…) A musa dita, e, em algumas ocasiões, sopra.” Há vários poetas hoje, escrevendo em nossa língua, que parecem ter uma linha direta, estilo 0800, com a Musa, e outros que têm encontros semanais com o Anjo. São excelentes. E há alguns como Campilho, de quem eu diria simplesmente: “tiene duende, cariño, tiene duende.” Bem-aventurados, pois estes acertam até quando erram.

Preciso encerrar este texto, esta aproximação. Deixem-me tentar fazer da seguinte maneira: eu acredito que Matilde Campilho sabe que “a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar,” como escreveu Lispector naquela mesma advertência. O que chamei de atenção ao sagrado, o que chamei de místico, de religioso em Jóquei, talvez seja certa lucidez, certa atenção ao mundo que Orides Fontela descreveu tão bem em seu pequeno poema: “A um passo / do pássaro/ res / piro”: atenção ao pássaro unida à atenção do próprio pássaro. No momento em que as duas se encontram, perde-se a contemplação. Trata-se do contrário, me parece, da ideia de Drummond sobre a tristeza das coisas “contempladas sem ênfase.” Matilde Campilho dá seu passo, a um passo da res (coisa, em latim), seja pássaro ou amante distante ou sorvete ou roda gigante ou a ilha Formosa ou a baleia que tropeça – jamais sem ênfase, e res-pira.

Data

quarta-feira 14.01.2015 | 13:01

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