O que está em crise quando se diz em crise a poesia
Recentemente, voltou a circular nas redes sociais um texto do escritor chileno Alejandro Zambra, “Contra los poetas”, no qual ele retoma o título de Witold Gombrowicz para retornar à crítica já lugar-comum à cena poética contemporânea: o excesso de poetas, o senso de coterie (só poetas lendo poetas) e a (suposta) total irrelevância da prática na cultura oficial de hoje. O texto tem função satírica, e suas últimas palavras parecem ter sido ignoradas pelos vários autores que voltaram a postá-lo com grandes expressões de concordância quanto ao triste e trágico estado das coisas. Algo que para mim sempre soa a derrotismo. O texto de Zambra encerra-se com estas palavras: “Eles suspiram e respondem como sempre responderam: que apenas a poesia salvará o mundo, que é necessário buscar, em meio à confusão, palavras verdadeiras, agarrar-se a elas. Dizem isso sem fé, de forma rotineira, mas têm toda a razão.” Eu próprio não me subscrevo a esta noção de uma poesia salvadora do mundo, mas em meio à confusão contemporânea, continuo acreditando nessa prática como relevante e natural, como ela tem sido há milhares de anos e continuará sendo. Afinal, ela ainda é a forma de arte mais popular do mundo. Sei que isso contradiz a opinião corrente, então passo a me explicar.
Em primeiro lugar, tento qualificar o problema, que talvez esteja na confusão comum entre a prática da poesia e sua recepção pelo establishment. É comum que críticos inteligentes se refiram à poesia como um todo, à prática em geral, tendo em mente o que se vê nos espaços oficiais. Essa crítica está em toda parte. Marjorie Perloff, uma crítica norte-americana que respeito e já editada no Brasil com seu importante A escada de Wittgenstein (SP: Edusp, 2008, tradução de Aurora Bernardini), retorna com frequência a ela. Um de seus textos mais recentes, “Poetry on the brink: Reinventing the lyric” [Boston Review, 8.5.2012], volta à questão de um mundo em que todos são poetas, em que a proliferação da prática tornou-se exponencial com os cursos e oficinas de escrita criativa. Existe um número exorbitante de pessoas que se consideram poetas porque jogam umas palavras sentimentais numa página, sem enchê-la por completo como se faz usualmente em prosa, e passa a se considerar poeta? Sem dúvida. Ao mesmo tempo, plataformas como o Instagram estão cheios de autointitulados fotógrafos, massacrando as lentes de seus celulares com imagens de seus pés, de paisagens, de seus amantes. Todo mundo é fotógrafo hoje em dia. Nem por isso sou obrigado a ler a cada semana algum artigo sobre a crise da fotografia. Com a criação de programas para composição musical, qualquer um que frequenta plataformas como o Soundcloud ouvirá a parafernália de milhares de jovens ao redor do mundo que se consideram produtores de música. Nem por isso lembro-me de ter lido qualquer artigo recentemente sobre a crise da música.
Há alguma diferença real nesse aspecto entre hoje e ontem? Os que se interessam por crítica e por história literária já passaram pela experiência de ler resenhas do passado, revisitar antologias de cem anos atrás, ou simplesmente passear por sebos e notar o número incrível de poetas que já foram publicados, estavam em atividade, tinham até mesmo algum reconhecimento, e hoje estão completamente esquecidos. A poesia é uma prática que se espalha pela sociedade como um todo há muito tempo. Quem não escrevinhou seus versos em algum momento? Num mundo em que a população deu um salto numérico gigantesco e todos passaram a ter acesso à publicação, mesmo que virtual, parece-me natural que as pessoas tenham a sensação de uma enxurrada nova. O problema verdadeiro, é claro, é o de recepção. Quando poetas começam a bradar contra o atual estado das coisas, sua preocupação primordial parece ser o cânone, não a prática. Pois, ainda que muitos esbravejem pelos quatro cantos que nada presta, podemos estar bem certos de que eles ao menos consideram o próprio trabalho excelente. E, se perguntados, conseguiriam extrair de si uns 3 ou 4 nomes de poetas vivos que consideram muito bons. Ora, portanto, o problema é que eles e aqueles que consideram bons não são visíveis. Qual época gerou mais do que 4 ou 5 poetas memoráveis? Se houver hoje no país 4 ou 5 poetas bons, podemos dizer que esta arte está em crise? Até os mais pessimistas diriam que há este número de bons poetas no país, ainda que não concordem entre si com a lista de nomes.
Vejam bem, não estou dizendo que não há problemas, e que não estão certos em alguns casos, quando se trata da poesia oficialesca. Ontem mesmo vi uma lista de autores em certa antologia a ser publicada em Paris para o Salão do Livro e, com poucas exceções, os nomes dos poetas me fizeram enrusbecer. E concordo com alguns amigos que dizem constantemente que há uma preguiça generalizada na grande maioria dos poetas em atividade. Aqui, a comparação com os fotógrafos volta a fazer sentido. Parece tudo tão fácil! É só usar o celular e os programas fazem quase tudo! Dá-se o mesmo com a poesia. Parece tão fácil! E ainda que alguns produzam coisas interessantes aqui e acolá, a maioria parece querer evitar os anos de estudo para produzir algo de relevância. Mas há alguns excelentes poetas em atividade no país, alguns mais populares, outros menos. Produzindo de forma bem mais séria que a maioria dos prosadores que vejo no território, gente que não saberia discutir literatura com profundidade se suas vidas dependessem disso. Já estive à mesa com prosadores: a conversa gira, em geral, em torno do número de vendas, qual editora é mais prestigiosa, quem saiu no New York Times, dinheiro, dinheiro, dinheiro. São raros os prosadores com quem já consegui ter uma conversa inteligente sobre a literatura como arte.
Aqui vem uma questão importante: quando se fala de crise da poesia, refere-se ao fato de que ela não vende nem tem espaço nos jornais. Ora, essa crise não é da poesia, desculpem-me. No mundo em que existo e me movimento, se falam da crise de uma forma de arte, compreendo imediatamente que ela não tem mais praticantes de qualidade. Mas, que ela não vende? Por favor. Se a poesia hoje ainda conta com homens e mulheres como Augusto de Campos, Anne Carson, J.H. Prynne, Friederike Mayröcker, para ficar apenas nos mais velhos, por que estaria em crise? Eu poderia citar alguns nomes de poetas da minha geração, dos dois lados do Atlântico, mas conheço bem o ego dos meus colegas, e a fobia de listas, a ânsia por legitimação que está no centro da infantilidade do debate literário de hoje. Bastaria dizer 1 nome aqui, nessa linha, para que tudo o que escrevi acima fosse esquecido e a conversa passasse a girar em torno desse possível nome.
Nós parecemos ter introjetado de tal forma o atual sistema econômico em nossa percepção estética, que se passa a dizer em crise uma forma de arte porque ela não vende. É uma visão tão perversa e pervertida que não sei como comentá-la. Não quero voltar aqui à ideia da poesia como “inútil”, ou, nas palavras de Paulo Leminski, “inutensílio”. O jovem poeta brasileiro Reuben da Cunha Rocha respondeu essa questão, em minha opinião de forma definitiva para nossos dias, em seu ensaio “Poesia inútil, poesia irrelevante?” [Modo de Usar & Co., 28.06.2013].
Não temos espaço aqui para entrar numa discussão que seria bastante longa sobre o que se passa hoje com a recepção da poesia escrita. Em meu ensaio “Ideologia da percepção“, tentei discutir alguns aspectos sobre as transformações culturais que levaram a poesia a perder “prestígio”. Hoje sei que há vários outros aspectos históricos, ligados às transformações sociais a partir da Revolução Francesa, complicados pela Revolução Russa, entre tantos outros, que transformaram a relação entre escritor e sociedade e tiveram consequências sobre a poesia.
Em junho, participo em Berlim de uma conferência sobre o “Futuro da poesia”. Pretendo seguir uma linha de pensamento que terá necessariamente que falar do passado e como ele retorna em nosso futuro como escritores. Pois, se os concretistas acreditavam que novas tecnologias levariam necessariamente a novas formas de escrita, não é exatamente o que temos presenciado. O que temos visto é a forma como novas tecnologias têm permitido o retorno a práticas milenares da tradição oral, por exemplo.
E aqui retorno à minha afirmação de que a poesia segue sendo a arte mais popular do mundo. Porque, apesar da narrativa histórica falaciosa de que poesia e música separaram-se após o declínio da tradição trovadoresca, essa visão se mostra cada vez mais míope, quando não simplesmente elitista. Porque a grande parte da população mundial jamais abandonou a tradição oral e a tradição trovadoresca. É a poesia cantada e falada, hoje por songwriters e rappers, que segue comandando a atenção do mundo. E mesmo a poesia escrita vem recebendo outra atenção no mundo das artes, por exemplo. Em Nova Iorque, a presença de poetas entre pintores e outros artistas visuais voltou a ser constante em exposições e bienais. É claro que há aí algo muito perigoso: como o mundo das artes visuais tornou-se um grande mercado, eles parecem agora buscar entre poetas uma espécie de legitimação artística, algum tipo de “autenticidade”. Isso talvez ajude alguns poetas a almoçar e jantar, mas é provável que terá alguns efeitos negativos a longo prazo. A presença de figuras, entre poetas, como Patti Smith e mesmo PJ Harvey, que anunciou há pouco a publicação de um livro de poemas, tem também um efeito positivo na forma como poetas passam aos poucos a ter mais atenção na mídia estrangeira. Revistas como Id e Dazed & Confused vêm fazendo vários perfis de jovens poetas trabalhando na Internet, como Crispin Best, Mira Gonzalez, e vários outros.
Há questões socioculturais importantes e complexas ainda por discutir, como o fato de que mesmo aqueles que acompanham a prosa contemporânea e se orgulham de conhecer os prosadores elogiados pelo New York Times não leem poesia. Minha reação em geral é: o problema é deles. Os grandes prosadores das últimas décadas, como sempre foi o caso, dedicaram atenção especial à poesia, como Roberto Bolaño, W.G. Sebald e David Foster Wallace. Percebe-se no texto de um prosador, com certa facilidade, se ele lê ou não poesia. Mas isso é questão para outro artigo.