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Jornalismo cultural

mario faustinoA situação do jornalismo cultural no Brasil é um tema frequente entre escritores. Algo que importa, não por uma mera questão de egos querendo ver seus trabalhos discutidos, ainda que isso muitas vezes turve a discussão. Se pensarmos no conceito de “publicação” como “tornar público” ou “entregar ao público”, independentemente do suporte usado – algo que se transforma ao longo dos tempos, o papel da imprensa e dos críticos que nela trabalham assume sua verdadeira importância comunitária.

Já perguntei entre amigos se a situação realmente piorou, ou se antes éramos jovens e despreparados demais para perceber a falta de qualidade nas discussões. Mas invariavelmente chegamos à conclusão de que a situação piorou, e muito. Não é necessário sequer voltarmos a tempos antigos, quando as discussões de grupos como o Noigandres (cerne do Movimento da Poesia Concreta, com Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos) e o Neoconcreto (com Ferreira Gullar e artistas como Lygia Clark e Hélio Oiticica) davam-se nas páginas de publicações como o Jornal do Brasil, ao mesmo tempo que um jovem poeta como Mario Faustino podia manter, no mesmo jornal, uma coluna como “Poesia-Experiência”, na qual discutia autores como Ezra Pound, Antonin Artaud e Eugenio Montale, tudo isso em uma época na qual os jornais brasileiros já contavam com a colaboração de críticos como Otto Maria Carpeaux, Sérgio Buarque de Holanda, Augusto Meyer e Alceu Amoroso Lima. Eu ainda me lembro dos tempos, não tão distantes, em que um jornal como a Folha de S. Paulo trazia, mensalmente, o Jornal de resenhas, e discussões inteligentes podiam acontecer nas páginas do Mais!.

Antes de discutir a questão propriamente jornalística, vale dizer algo sobre a crítica. Nos últimos tempos, tenho soltado às vezes o desabafo: “Ai, que saudades da crítica impressionista!”, daqueles autores que assumiam o desafio de levar a um público mais amplo o trabalho muitas vezes difícil de autores contemporâneos e do passado. Com a profissionalização e especialização do trabalho crítico, ele passou a encastelar-se na universidade, e sua aversão a um trabalho mais didático (unida a suas ilusões cientificistas), acabou transformando grande parte dos esforços da crítica em uma série de achaques incompreensíveis para a maior parte do público. Não estou dizendo que os melhores trabalhos acontecendo na universidade não são importantíssimos. Mas falta a este ensaísmo muitas vezes aquela habilidade de equilibrar-se entre a profundidade e a leveza, como encontramos com mais frequência em grandes autores, como Otto Maria Carpeaux e Sérgio Buarque de Holanda. Há, obviamente, algumas exceções, mas que comparecem muito pouco nos jornais.

E aqui entra a responsabilidade dos meios de comunicação. Grandes jornais, como a Folha de S. Paulo e o Estado de S. Paulo, minguaram por completo suas discussões culturais, caídos na mentalidade mesquinha das novidades, dos assuntos, dos bate-bocas e daquela coisa perniciosa para a cultura que é a necessidade do gancho, transformando suas páginas de cultura em meras extensões dos comunicados de imprensa das grandes editoras, caídas elas mesmas em seus interesses meramente comerciais e inconscientes de suas responsabilidades também comunitárias. É difícil encontrar hoje no Brasil um editor do naipe de Ênio Silveira, que pôde fazer um trabalho de tanta importância política e comunitária à frente da Civilização Brasileira. Restam os corajosos independentes, que levam adiante o trabalho de outros corajosos do passado, como Massao Ohno e Roswitha Kempf, responsáveis pelos livros de Roberto Piva, Hilda Hilst e Orides Fontela muito antes que fossem recebidos por editoras maiores, já consagrados, à porta da morte. Entre os resistentes corajosos de hoje, menciono Vanderley Mendonça, à frente do Selo Demônio Negro.

A situação é mais triste ainda ao percebermos o despreparo dos jornalistas dos cadernos culturais de hoje, com artigos que são muitas vezes paráfrases do que os escritores disseram em entrevistas ou do que já foi dito sobre eles em outros artigos, quando não são cópias do que a editora enviou à redação.

Assim, de um lado, a profundidade de uns torna-se apenas impenetrabilidade, do outro, o que poderia ser leveza é só ligeireza e preguiça. As exceções vão se tornando pequenos oásis, como a página de poesia mensal que Carlito Azevedo prepara para o “Prosa & Verso” d’O Globo, o trabalho de Schneider Carpeggiani no Suplemento Pernambuco, ou o Suplemento Literário de Minas Gerais, que segue resistindo. Por mais críticas que eu tenha a um jornal como O Globo, é necessário dizer que ao menos nele ainda é possível encontrar surpresas. Não me esqueço do choque, de passagem pelo Rio de Janeiro, ao abrir o jornal e topar com um belo artigo sobre o poeta franco-egípcio Edmond Jabès, que acabava de ser lançado no Brasil pela pequena editora Lumme. Um autor desconhecido no país, lançado por uma pequena editora, mas que merecia justamente por isso um trabalho jornalístico decente. E o jornal conta por vezes com a colaboração de escritores, como Laura Erber e Juliana Krapp. Apesar de os jornais paulistas trazerem colunas de escritores em suas páginas, estes parecem mais dedicados a fazer pequenas crônicas de suas vidas do que discutir literatura. São Paulo parece ter-se tornado o reino dos intelectuais engraçadinhos.

Talvez algum dia apenas na internet seja possível encontrar vida inteligente, onde as exigências financeiras são outras, e o número de vendas não seja argumento para dar espaço a um artefato cultural. Não sei se os jornais brasileiros estão preparados ou dispostos a mudar algo nesta questão. Ao ler certas resenhas e artigos sobre literatura contemporânea, tenho a impressão de que contrataram alguém que parou em Picasso e Matisse para discutir as artes visuais de hoje, para fazer uma analogia recorrendo a outro campo. Enquanto os cadernos culturais não contarem com um quadro realmente preparado para discutir cada arte e não se livrarem da ânsia novidadeira e da necessidade exclusiva do gancho, será difícil ver mudanças. Estou convencido de que os cadernos culturais exigem a disposição de se lançar a um jornalismo que deveria ter as mesmas ambições investigativas dos que escrevem para o caderno de política. Encontrar o equilíbrio entre profundidade e leveza, não impenetrabilidade e ligeireza. Todos os que lidamos com literatura, cuja matéria prima é a língua, um bem comum, precisamos rever nossas responsabilidades comunitárias, especialmente neste momento em que certas forças obscurantistas parecem ter tomado todos os canais de comunicação.

Data

sexta-feira 17.04.2015 | 12:53

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