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Superávit & Déficit – A balança comercial da cultura brasileira contemporânea

Eu ainda me lembro claramente de uma camiseta que o namorado de minha irmã costumava usar na década de 1980, quando eu ainda era criança. Na frente, ela carregava o bordão da Ditadura Militar: “Ame-o ou deixe-o”, com uma bandeira do Brasil. Era copiado dos amercanos, como em tantos de seus crimes.  Atrás, no entanto, ela tinha o desenho de um avião e, em letras garrafais, CUMBICA, com duas mãos apontando em forma de setas a opção a seguir. Eu acredito que esta camiseta foi meu primeiro contato com as possibilidades de sátira política através da língua. Na música, era o tempo do rock brasileiro de bandas como Legião Urbana, expondo as placas dos nossos becos sem saída. É claro que nosso complexo de vira-lata, como se diz, vem de mais longe. Mas naquele momento, sair do país, emigrar para os Estados Unidos ou a Europa, era a alternativa para uma geração que se viu enclausurada na “década perdida”. O filme de Walter Salles, Terra Estrangeira (1995), mostra como isso perdurou após a redemocratização. Os anos de hiperinflação, dos sucessivos planos econômicos que terminavam em desastre. A época do “sai ministro, entra ministro”. O Brasil nos parecia uma piada de mau gosto, algo constrangedor. A cena do filme de Salles, quando a personagem de Fernanda Torres tenta vender seu passaporte brasileiro no mercado negro e recebe a oferta de apenas 300 dólares, mostra bem o sentimento da época. “Mas é novo em folha!”, ao que o contrabandista responde: “É brasileiro”.

Nós sabíamos que tínhamos alguns motivos de orgulho, algum tipo de orgulho. Sabíamos que nossa música era bela, original. Que nas artes e no esporte alguns brasileiros podiam ser fonte de alegria para o mundo. Mas tudo parecia uma promessa falida, e não era muito claro de quem era a culpa, ainda que soubéssemos da responsabilidade de nossos dirigentes, militares e civis. Havia uma nostalgia tanto por Carmen Miranda como por Tom Jobim, aqueles brasileiros que haviam encantado o Império. Entre prosadores e poetas, sabíamos desde a Poesia Concreta que os brasileiros podiam sim ser ponta de lança. Que, se estrangeiros ao menos descobrissem Machado de Assis, veriam o que as mazelas daquela terra podiam produzir.

Na década de 90, com a estabilização da economia após o Plano Real, houve uma transformação que certamente descobriremos um dia ter sido mais coordenada pelo Planalto que se imagina. Mas ocorreu. De repente, meninos de classe média-alta se entregavam à capoeira como seria impensável uma década antes. O samba se tornava coisa para gente culta. A propaganda brasileira passava a exaltar as belezas nacionais. Em 1994, ano do Plano Real, o Brasil é convidado de honra da Feira do Livro de Frankfurt. Em 1998, do Salão do Livro de Paris. Na música, surge o Manguebeat de Chico Science e Nação Zumbi, Mundo Livre S/A e Mestre Ambrósio, e a esperança de que certos desenvolvimentos da cultura popular tolhidos pelo Golpe de 64 poderiam ser retomados. Na literatura brasileira da época, no entanto, foi um período de certo absenteísmo histórico e contextual. O nacionalismo dos Modernistas de 22 parecia algo cafona, a ser superado. Resenhando a antologia de poesia brasileira publicada nos Estados Unidos, Nothing The Sun Could Not Explain: 20 Contemporary Brazilian Poets, um crítico americano reclamava que os textos poderiam ter sido escritos em qualquer lugar, e recomendava como comparação a leitura de “A Mesa”, de Carlos Drummond de Andrade, numa antologia também recém lançada nos Estados Unidos à época. Havia nisso, é claro, certa expectativa de exotismo por parte do americano, mas ele tocava em um ponto que estava realmente presente na mentalidade literária da época. Os traumas dos dualismos de esquerda e direita da Ditadura haviam deixado marcas na literatura, e certo desejo de poder habitar apenas o mundo da imaginação.

É ingênuo não perceber a influência que um momento econômico tem sobre a percepção estrangeira da arte de um país. A ascendência econômica dos Estados Unidos e sua influência cultural estão intimamente ligadas. Washington sabe muito bem como usar Hollywood.

Nos últimos anos, o economia brasileira superou a inglesa e a francesa. A presença cultural brasileira no mundo talvez jamais tenha sido tão forte. Na última década o Brasil foi o convidado da Feira do Livro de Frankfurt uma vez mais, e o país-tema do festival Europalia, na Bélgica, trazendo dezenas de artistas, escritores e músicos para o continente. O Museu de Arte Moderna de Frankfurt organizou a primeira grande retrospectiva da obra de Hélio Oiticica. Neste exato momento, os Estados Unidos veem a primeira grande retrospectiva de Lygia Clark no MoMA, que traz ainda a mostra On the Edge: Brazilian Film Experiments of the 1960s and Early 1970s, exibindo filmes de Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Carlos Vergara, José Mojica Marins, Antonio Dias e outros. No Guggenheim, também em Nova Iorque, uma exposição de arte contemporânea latino-americana, chamada Under The Same Sun: Latin-American Art Today, é marcada pela presença de brasileiros, trazendo trabalhos de Paulo Bruscky, Rivane Neuenschwander, Adriano Costa, Jonathas de Andrade, Erika Verzutti e Tamar Guimarães. Apesar de inúmeras críticas, a Bienal de São Paulo segue sendo importante, muito mais que a de Berlim. Traduções nos últimos anos, de escritores brasileiros, levaram Machado de Assis à lista de autores favoritos de intelectuais como Susan Sontag, Woody Allen e Harold Bloom, para citar três nomes bastante variados. Primeiro descoberta na França, a biografia do americano Benjamin Moser e as novas traduções lançadas nos Estados Unidos e Inglaterra fizeram de Clarice Lispector um dos nomes mais comentados dos cadernos culturais de língua inglesa, e, numa entrevista recente, a jovem escritora americana Kate Zambreno citou A Hora da Estrela (1977) como um dos livros de maior influência sobre a escrita de seu mais recente romance, Green Girl (2014). A coletânea de poemas Rilke Shake (2007), de Angélica Freitas, foi traduzida e lançada na Alemanha e nos Estados Unidos. Carlos Drummond de Andrade será relançado pela Penguin, em tradução de Richard Zenith. Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, esgotou um par de edições na Alemanha, em tradução de Berthold Zilly. Jorge Amado tem sido reeditada na Alemanha, após ter grande sucesso aqui entre os anos 1960 e 1980. Sob a empreitada de Aníbal Cristobo, a poesia brasileira contemporânea se insere no mundo hispânico, com suas traduções para livros de Paulo Leminski, Arnaldo Antunes, Marcos Siscar e, futuramente, Marília Garcia e Luca Argel. A música brasileira chegou mesmo à rede da  música pop internacional com as bandas paulistanas Cansei De Ser Sexy e Bonde do Rolê.

São, como se pode ver, fenômenos variadíssimos em escopo e alcance. Talvez o Brasil tenha percebido que uma presença política séria no mundo passa pela inserção de sua cultura em outras plagas. Ao mesmo tempo, mal escrevo isso e percebo como isso pode soar mero imperialismo capenga, algo que o Brasil não sabe por vezes reprimir. Mas talvez a resposta especificamente brasileira a algumas questões que passam por tantas culturas possa começar a se fazer ouvir cada vez mais no mundo, aquele de tantos problemas compartilhados.

Data

segunda-feira 14.07.2014 | 09:33

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