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São Paulo, o profundo

Talvez seja a idade que avança, o escritor começa a querer recompor a merencória infância. Nós nunca fomos muito prudentes na hora de seguir os conselhos de Drummond. Afinal, nem ele o foi. A morte de Suassuna e a reflexão sobre o seu papel na cultura brasileira talvez tenham também intensificado isso, e os textos e mensagens recentes de colegas cariocas que se exilaram em São Paulo, como Victor Heringer e Marília Garcia. Quiçá tudo não passe de sentimentalismo de exilado, como comentou minha colega luso-berlinense Adelaide Ivánova. Houve ainda a morte recente de meu tio, Douglas Domeneck, e o pensamento em meu pai, entrevado na cama após seguidos derrames no interior de São Paulo, quando em minha memória ainda o vejo saindo de casa, todo enérgico, para fazer cooper, como dizia, ou gritando os preços de leitoas e frangos assados nos leilões que dirigia para as quermesses da cidade natal. Soará como paroquialismo esse texto?

Uma cena desenrolada na cantina da Faculdade de Filosofia da USP, lá pelos idos de 1998, quando eu já havia deixado o interior de São Paulo e vivia na Desvairada: o poeta Érico Nogueira, meu amigo e também paulista do interior, vira-se e diz: “O paulista é um povo sem metafísica.” De qualquer forma, nessas conversas, eu tomava o cuidado de enrolar o R que trazia arrastado desde os tempos das poRtas veRdes do interioR. Essa aproximante retroflexa que ainda se debate se é influência do tupi-guarani dos indígenas ou do português do Minho.

Quando leio os textos de Pier Paolo Pasolini, o poeta da pequena Casarsa, sobre a destruição cultural que a massificação e industrialização (sem metafísica) trouxeram à Itália, penso às vezes na devastação cultural e metafísica do interior de São Paulo, irradiando da capital. Cresci em uma década na qual ainda sobreviviam resquícios da cultural popular do interior do estado. O povo ainda ouvia as modas de viola. Em algum rincão escondido do país, vivia ainda Helena Meirelles, obscura. As procissões ainda passavam pela rua, e havia aquele dia do ano em que a Bandeira dos Santos Reis vinha para ser beijada. As senhoras da rua se reuniam às terças-feiras para rezar o terço, e quando era o tempo da novena, o vozerio das ladainhas invadiam qualquer casa, especialmente a minha, que ficava a dois portões da reunião. Criança, eu ficava com a cara grudada na grade, olhando as velhinhas, ouvindo hipnotizado aquele som ritmado. Era o mistério.

E quando perguntei a minha avó, a Vó, que viu lobisomem duas vezes, por que não havia mais assombração, ela disse: “É culpa da eletricidade, meu fio. Assombração e lobisomem têm medo quando tem muita gente, só vêm no escuro do sítio.” Era a matriarca e minha primeira experiência com o poder narrativo da palavra, suas mil estórias, como em sua versão da Gata Borralheira – que vivia numa fazenda e ganhava da Fada, em primeiro lugar, uma vaca. A vaca, que era (é claro) mágica e falava, era morta pela madrasta, mas não antes de instruir a borralheira a abrir suas tripas mais tarde, com uma faca, pois encontraria em seus intestinos um vara verde, mágica. O resto é Disney, com a exceção do príncipe, que na verdade era apenas o filho mais velho e mais bonito do sitiante mais rico da região.

Hoje, as festas juninas são aquele espetáculo deprimente em escolas particulares. Os rapazes são agroboys, sua música é o country. Do mistério das manifestações religiosas, resta apenas o conservadorismo beato. Da devoção, o zelo vazio. Do localismo, que pode estimular de forma tão criativa a cultura de um país, resta o provincianismo. Por onde andam Os Parceiros do Rio Bonito? Cururu não há mais.

O embate entre o Brasil rural e o urbano segue. Sua estrutura se repete nas batalhas dentro das cidades. Higienópolis de costas dadas a Pinheirinho. O esvaziamento cultural de São Paulo é o que aguarda o Brasil como um todo, se a elite mais obtusa do mundo, a brasileira, não for detida em sua vulgaridade pseudo-modernizadora.

Data

terça-feira 29.07.2014 | 10:35

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