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Patrocínio, Ventura e Colina em antologias

Talvez não haja trabalho crítico e editorial mais ingrato que a organização de antologias. Elas parecem agitar uma verdadeira fobia na cena literária, que vem do eterno medo de todo escritor: ser deixado de lado, ser rejeitado. Antologias influem no cânone, palavra que tem uma conotação fortemente religiosa em nossa cultura, não podemos nos esquecer. Na Igreja católica, ela designa tanto as leis adotadas pela autoridade eclesiástica quanto o processo de santificação de um ser humano. Sua quase divinização. Escritores querem se sentar à direita de Deus Pai. Ou, ao menos, ir pro céu das reputações literárias. É esta conotação que também guia a fúria de alguns contra aqueles que propõem revisões no cânone. Afinal, santo não deixa de ser santo.

Também nos esquecemos das conotações militaristas da palavra “vanguarda”, e de como isto influi em nossas discussões. As querelas entre modernos e antigos, ou vanguardistas e tradicionalistas, podem ser explicadas por vezes pelo embate entre estas duas concepções críticas.

Mas é também isto que confere a força e extrema responsabilidade que envolvem a organização de uma antologia. Não vou entrar em exemplos, mas nos últimos tempos houve no Brasil algumas que pecaram (olha o vocabulário religioso de novo) justamente por sua preguiça em questionar. De que nos vale realmente uma antologia se ela apenas reenforça o status quo, ou nos diz apenas o que já estamos cansados de ouvir? Resgatar o bom trabalho de autores negligenciados ou esquecidos é um trabalho importantíssimo, que pode ter efeitos positivos sobre a produção contemporânea.

Pode nos parecer surpreendente hoje, mas o trabalho de Murilo Mendes esteve negligenciado no debate poético por duas décadas após sua morte, até o lançamento de sua obra completa pela Nova Aguilar em 1994. Também pode parecer chocante, mas Hilda Hilst e Roberto Piva eram escritores ainda marginais no fim do século passado, e as reedições recentes do trabalho de Jorge de Lima também são bastante importantes para resgatarmos esta voz tão singular dentro de nosso Modernismo. Ainda há muito trabalho por fazer, quando pensamos que os poemas da excelente Henriqueta Lisboa seguem negligenciados, assim como os de tantos outros.

Não quis dar maus exemplos, mas os bons merecem ser gritados dos telhados. Uma das contribuições mais importantes dos últimos anos nesse campo foi Poesia (Im)Popular Brasileira [São Bernardo do Campo: Lamparina Luminosa, 2012], organizada por Júlio Mendonça. Trata-se de um volume que reúne poemas de importantes poetas brasileiros menos conhecidos do público, ou que, nas palavras do editor, “por maior ou menor tempo, ficaram ou estão deslocados em relação aos cânones vigentes”. A antologia traz poemas de Aldo Fortes, Edgard Braga, Gregório de Matos, Joaquim Cardozo, Max Martins, Omar Khouri, Patrícia Galvão, Qorpo-Santo, Sapateiro Silva, Sebastião Nunes, Sebastião Uchoa Leite, Joaquim de Sousândrade, Stela do Patrocínio e Torquato Neto. Cada um dos poetas é apresentado por um autor convidado, responsável pela seleção dos poemas. Graças a ela, descobri o trabalho de Stela do Patrocínio.

poesia impopular

“Poesia (Im)Popular Brasileira” [São Bernardo do Campo: Lamparina Luminosa, 2012], organização de Júlio Mendonça

Patrocínio nasceu em 1941, e viveu, desde 1962, internada na Colônia Juliano Moreira, assim como Arthur Bispo do Rosário (1911-1989). Sua fala poética chegou a nós transcrita de cassetes por Viviane Mosé, que organizou essa textualidade no volume Reino dos bichos e dos animais é o meu nome [Rio de Janeiro: Azougue, 2002].

 

Não sou eu que gosto de nascer
Eles é que me botam para nascer todo dia
E sempre que eu morro me ressuscitam
Me encarnam me desencarnam me reencarnam
Me formam em menos de um segundo
Se eu sumir desaparecer eles me procuram onde eu estiver
Pra estar olhando pro gás pras paredes pro teto
Ou pra cabeça deles e pro corpo deles

(Stela do Patrocínio, em diagramação de sua fala por Viviane Mosé, in Reino dos bichos e dos animais é o meu nome [Rio de Janeiro: Azougue, 2002])


Resgatar esta voz é tanto uma contribuição poética como política. Quem conhece meu trabalho sabe que evito esta distinção, mas sempre é bom frisar. Aqui entramos num terreno escorregadio e difícil. Recorro à introdução de Júlio Mendonça à antologia: “
Toda literatura – de qualquer país ou comunidade linguística do mundo – tem seus autores deslocados, não-canônicos (como se diz no jargão literário). Deslocamento autoconsciente (programático), decorrente de opções estéticas, temáticas, ou por razões geopolíticas”.

Cito isso para mencionar outra antologia, esta monumental, que teve um impacto sobre meu pensamento crítico nos últimos anos: Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011), organizada por Eduardo de Assis Duarte. Em quatro volumes, ela traz desde o trabalho de clássicos do século 19 e 20, como Machado de Assis, Cruz e Sousa, Luiz Gama e Lima Barreto, a contemporâneos como Nei Lopes e Ana Maria Gonçalves. Foi graças a ela que descobri dois autores admiráveis: Adão Ventura (1946-2004) e Paulo Colina (1950-1999). E lendo o trabalho dos dois, na antologia e o que pude encontrar na Rede, fiquei pensando sobre os motivos que levariam estes autores a serem negligenciados. Primeiro, um poema de cada:


Negro forro

Adão Ventura

minha carta de alforria
não me deu fazendas,
nem dinheiro no banco,
nem bigodes retorcidos.

minha carta de alforria
costurou meus passos
aos corredores da noite
de minha pele.

 §

 Forja
Paulo Colina

entre uma calmaria
          e outra
do mar de nossas peles
me bastaria amor cantar o fogo
que somos na nascente
          de suas coxas

mas há essa dor de outros tempos
e corpos
essa rosa dos ventos sem norte
na memória sitiada da noite

embora o gesto possa ser
no mais todo ternura
o poema continua um quilombo
          no coração


Quando penso na importância que críticos e poetas brasileiros na década de 90 deram à concisão, à chamada “economia de meios”, me pergunto: por que poetas de mão tão firme, de escrita tão tesa quanto Adão Ventura e Paulo Colina permaneceram desconhecidos e negligenciados, quando outros fizeram suas carreiras sobre tais qualidades? A resposta que me vem à mente não é muito agradável.

Então, sem rodeios: será porque eram escritores negros? Eu me pergunto. Em um texto anterior aqui neste espaço [“Nota sobre literatura e consciência negra”, DW Brasil, 24/11/2014], escrevi o seguinte: “Pessoalmente, sempre penso em como uma parte considerável da melhor literatura brasileira no século 19 foi produzida por cidadãos à margem: o louco Qorpo-Santo, o filho de escravos Cruz e Sousa, o homossexual Raul Pompeia, o quase anônimo Joaquim José da Silva, que conhecemos como Sapateiro Silva, autor de alguns dos maiores poemas satíricos do país ao lado de Luiz Gama. No entanto, na história oficial da literatura brasileira, especialmente do Grupo de 22 em diante, esta visibilidade da presença negra na produção literária desaparece. Conhecemos a representação dos brasileiros negros em quadros de Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti, em poemas de Jorge de Lima e Mario de Andrade, nos romances de Jorge Amado, mas o que houve com a visibilidade da produção de artistas e escritores negros no período? Seria de se esperar que essa visibilidade aumentasse quanto mais nos afastássemos do período escravagista, mas não é o que houve”.

O que complica a discussão é pensarmos que há outro fator: pois Ventura e Colina foram escritores negros que escreveram sobre a experiência da Diáspora. E isso agita outra fobia da cena literária: a politização da poesia, quando pensamos na ideologia trans-histórica que regeu a crítica na década de 90 e até meados do início deste século, baseada no ensaio “Da morte da arte à constelação: o poema pós-utópico”, de Haroldo de Campos. A escrita que demonstra claramente a experiência do que é o Outro na hierarquia social brasileira contesta nossa noção de Universal. Pois universal, já nos foi dito subliminarmente, é a experiência do homem branco heterossexual.

E com isso negligenciamos a literatura de escritores tão admiráveis quanto Adão Ventura e Paulo Colina, que poderiam ter sido referência àqueles que admiraram a escrita de Paulo Leminski, Sebastião Uchoa Leite e outros naquela década e hoje, por sua concisão, sua economia de meios, e assim por diante. Poemas como estes abaixo são admiráveis em tantos aspectos.

Limite
Adão Ventura

e quando a palavra
apodrece
num corredor
de sílabas ininteligíveis.

e quando a palavra
mofa
num canto-cárcere
do cansaço diário.

e quanto a palavra
assume o fosco
ou o incolor da hipocrisia.

e quando a palavra
é fuga
em sua própria armadilha.

e quando a palavra
é furada
em sua própria efígie.

a palavra
sem vestimenta,
nua,
desincorporada.

§

Solitude
Paulo Colina

Dentro desta noite cúmplice
tudo se funde
em meus ouvidos:
o assobio plano do vento
e as ondas pontuais das vozes
e gargalhadas
no interior dos bares.

Já estive em três deles. E até agora,
nenhuma cadeira me aqueceu direito;
nada do que bebi me caiu bem.

As horas se arrastam ao rés dos edifícios
do centro capital,
alheios à soturna clausura das palavras
dentro de mim.

Pelas ruas,
cada ponto de ônibus
é um cão vadio roendo silêncios.
Meu peito é um vão
por onde toda a cidade transita.


Que bonito seria, por exemplo, ver uma editora do porte de uma Companhia das Letras, que nos últimos anos publicou até antologias de poetas estrangeiros como Wisława Szymborska e W.H. Auden, com lindas fotos dos autores na capa, publicar também uma antologia com o lindo rosto negro do zimbabuense Dambudzo Marechera. E que seu maravilhoso trabalho de editar a obra completa de Paulo Leminski, Ana Cristina Cesar e Waly Salomão nao pare por aí, mas quem sabe possa fazer o mesmo com Adão Ventura e Paulo Colina. E que outras editoras sigam o exemplo.

Aos que amam apenas o universal parcial, quando se trata do desafio de colocar-se na pele do outro, que melhor caminho haveria além de um poema, vindo da pele do Outro?

Data

quinta-feira 07.05.2015 | 11:18

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