Grass e Galeano
Primeiro, começaram a pipocar ontem nas minhas redes sociais referências a Eduardo Galeano, vindo de contatos na América Latina. Logo ficou claro que o uruguaio havia morrido, já que é raro que tantas pessoas decidam citar um mesmo autor ao mesmo tempo, a não ser que tenha secado de repente a fonte das citações. Günter Grass já havia morrido, mas com sua relação mais difícil com a Alemanha, em especial recentemente, muito pouco havia dele circulando na rede por meus contatos europeus, até que vi a notícia explícita de sua morte, em Lübeck, onde havia fixado residência há anos.
Hesitei se escreveria sobre eles, com a sensação de que esta página ultimamente mais vinha parecendo a seção de obituários de um jornal, tantas têm sido as mortes de escritores desde o ano passado. E não sei se poderia acrescentar muito ao que já vem sendo dito na imprensa desde ontem. Havia anos que não lia nem Grass nem Galeano. Falar sobre os dois num mesmo texto é estranho, jamais havia pensando em qualquer possível ligação entre eles, ou comparado seus contextos, e talvez jamais o fizesse se não tivessem morrido no mesmo dia.
Grass nasceu em 1927, Galeano, em 1940. Pertenciam a gerações e contextos bastante distintos. Escritores de reputação mundial no pós-guerra, o período significava coisas muito diferentes para cada. Grass viveu os horrores da Segunda Guerra em um de seus epicentros, a Alemanha, tendo nascido em uma região para a qual a guerra teria consequências drásticas. Para Galeano, eram outras guerras, as dos horrores latino-americanos, suas ditaduras, suas batalhas por independência contra o imperialismo. Mas ambos escreveram épicos sobre os territórios onde nasceram e que os feriam, com grande repercussão sobre o pensamento político de suas gerações e das seguintes. A popularidade de seus trabalhos vinha ainda de sua escrita fortemente alegórica, que permitia uma espécie de fácil decodificação política. Para mim, um romance como O Tambor (1959) se ressente desse alegorismo, ainda que demonstre o invulgar talento narrativo de Grass. Galeano é sempre lembrado pelo livro As veias abertas da América Latina (1971), que influenciou várias gerações da esquerda latino-americana. Ele teve grande impacto sobre mim quando o li bastante jovem. E, ainda jovem, havia aprendido que Grass era O escritor alemão vivo, da mesma forma que os alemães haviam elegido Jorge Amado como O escritor brasileiro.
As ambições épicas de Grass e Galeano estão em seus grandes romances a buscar a costura das conquistas e tragédias históricas em seus territórios, como em Uma longa história e no já citado O Tambor, de Günter Grass, ou na trilogia Memória do fogo, de Eduardo Galeano. Mas talvez o que mais os una seja sua crença no papel do escritor como intelectual público. A maneira como para eles literatura e política eram indissociáveis. Sempre prontos a interferir no debate político em suas línguas, os dois escritores estavam entre os mais presentes, politicamente, em suas respectivas literaturas.
Aqui na Alemanha, Grass mereceu homenagens em vários programas de notícias, mesmo nos televisivos, em geral avessos a reportagens sobre cultura. Realmente, ele foi o mais famoso escritor alemão do pós-guerra e a Alemanha perde um intelectual público que foi importante, ainda que bastante falho. Como é de se esperar de qualquer ser pensante no calor de suas horas. Sua reputação jamais se recuperou por completo depois da revelação, somente na década de 90, de ter feito parte da Waffen-SS, a tropa de elite nazista, quando tinha 17 anos, no último ano da guerra. Para um autor que havia passado toda a sua vida criticando seus conterrâneos por seus passados sombrios, omitir a informação de que ele próprio possuía tal passado foi considerado um ato de extrema covardia e hipocrisia. Seu papel como bastião moral do país jamais seria o mesmo. Em 2012, ao publicar um poema incrivelmente medíocre tanto formal como intelectualmente, numa crítica a Israel eivada de um vocabulário bastante questionável, tirado justamente do passado nazista, o tiro de misericórdia fora dado em sua autoridade intelectual e política no país. Também a posição de Galeano como intelectual se transformaria, porém em decorrência do papel flutuante da própria esquerda na América Latina.
Duas gerações de escritores e intelectuais vêm nos deixando nos últimos dois anos. Na Alemanha, talvez apenas Hans Magnus Enzensberger mantenha uma posição similar à de Günter Grass como “voz da consciência” na literatura. Eduardo Galeano era uma das mais lúcidas e corajosas da América Latina. Deixa-nos com poucas alternativas. Não se trata de dizer que não haja mais escritores preparados para assumir este papel entre nós. Simplesmente transformou-se a relação entre poder, mídia e escritores. Antes, o exílio e a execução sumária eram as armas do poder contra intelectuais. Mas isso se provou ineficaz para o poder, pois gerava mártires que podiam ser usados pelas gerações seguintes uma vez mais contra eles. A estratégia hoje é outra: com a mídia dominada em grande parte pelo poder político das elites, basta soterrar os escritores sob o silêncio, negando-lhes o espaço que dedicam a banalidades, justificando-se com o discurso da crise de relevância da literatura. Afinal, sem espaço na mídia, um intelectual não tem como se fazer público. Os dois deixam-nos em maus lençóis, ainda que provavelmente pouco poderiam ter feito além do que já fizeram. Devemos a eles leituras críticas e inteligentes, não admiradas e boquiabertas, como eles próprios tentaram fazer ao longo de suas vidas.