As memórias de Luiz Roberto Salinas Fortes
Nasci em julho de 1977, em pleno inverno, ou, como se diz no interior de São Paulo, no meio duma frente fria. Meu pai, como minha mãe sempre gostava de dizer, não estava na cidade, mas em São Paulo, cuidando de assuntos da prefeitura de Bebedouro, onde trabalhou por muitos anos em meio à Ditadura Militar. O primero nome de político que aprendi foi o de Paulo Maluf, a quem meu pai apoiou politicamente toda a sua vida. No Palácio do Planalto, oficiava Ernesto Geisel os ritos da nacionalidade. Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda estavam mortos, fazia pouco. Há mais tempo estavam mortos Lamarca e Marighela. Iara Iavelberg. A guerrilheira Maria Auxiliadora Lara Barcelos, do VAR-Palmares, havia se lançado na frente de um trem em Berlim – onde eu jamais poderia imaginar que viria a viver – fazia mais de um ano. Toda a resistência à ditadura havia sido massacrada. Se o período de chumbo começava a arrefecer, ainda fazia vítimas e deixava detrás de si milhares de mortos e desaparecidos. Quais são minhas memórias da Ditadura, tendo nascido e vivido em seus últimos oito anos? Lembro-me de João Figueiredo em pronunciamento oficial na televisão, minha pergunta a minha mãe sobre quem era aquele homem. “O presidente”, ela disse. As aulas de Educação Cívica na escola, as de Organização Social e Política do Brasil. O hino nacional cantado todas as manhãs, antes das aulas. A mão direita no peito.
Ler as memórias de Luiz Roberto Salinas Fortes (1937-1987) nesta última semana foi uma experiência difícil. Lançado pela primeira vez em 1988, após a morte do escritor, tradutor e professor de filosofia da Universidade de São Paulo, Retrato Calado é um documento essencial para nossa época. O volume foi relançado pela Cosac Naify em 2012. Estranho e pungente ler as memórias deste homem, saído do interior de São Paulo para estudar filosofia em São Paulo, como eu mesmo fizera, reconhecer algumas experiências e ao mesmo tempo perceber como o horror histórico em que se viu lançado era diferente do meu.
Muito bem escrito, Salinas Fortes nos lança em pleno pesadelo em seu livro. Não há introdução, preparação de cena: começamos na primeira página já caminhando com ele em um corredor daquele prédio de horrores no Largo General Osório em São Paulo, onde o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) teve sua famosa e infame sede, a caminho da sala onde seria torturado. Mas o homem que ali caminha, com um pacote nas mãos que os agentes de segurança fizeram-no carregar, não sabe o que está prestes a acontecer. Quando chegam à sala e ordenam a Luiz Roberto Salinas Fortes que abra o embrulho, ele percebe que acabara de carregar o próprio aparelho de choques elétricos que usariam contra ele naquela noite. Os agentes explodem em riso. Fosse uma imagem literária, de ficção, eu tiraria aqui o chapéu para o escritor por criar uma imagem de tamanha força. Mas aquilo era a realidade, a realidade de tantos homens e mulheres durante o Regime Militar no Brasil. Despido, pendurado no pau-de-arara, o escritor logo estaria em pleno pesadelo. É leitura de arrancar as entranhas. Penso no poema de Wisława Szymborska chamado “Torturas”: “Nada mudou. / O corpo sente dor, / necessita comer, respirar e dormir, / tem a pele tenra e logo abaixo sangue, / tem uma boa reserva de unhas e dentes, / ossos frágeis, juntas alongáveis. / Nas torturas leva-se tudo isso em conta” (Poemas, tradução de Regina Przybycien, Companhia das Letras, 2012).
O candor e honestidade com que Salinas Fortes narra esta experiência horrível torna o relato ainda mais potente. Os gritos, o momento em que seu corpo não mais tolera a dor e ele defeca de dor, o terrível momento em que, sendo questionado onde certo amigo poderia ser encontrado, o escritor deixa escapar o nome de uma amiga, a viagem terrível à casa da amiga, com ele no camburão, a prisão da amiga na sua frente, as dúvidas sobre heroísmo e covardia, sua honestidade, sua sinceridade. É não apenas um documento da memória política de um período que ainda nos assombra, mas também uma reflexão admirável sobre a natureza política do ser humano.
A escrita das testemunhas de horrores, daqueles que os viveram na própria pele, é imprescindível para que conheçamos um período não apenas por números, estatísticas. Dar rosto ao horror é um trabalho que exige força hercúlea de um escritor. É esta força histórica que nos assombra nos relatos de homens como Primo Levi, nos poemas de Paul Celan. A importância de um livro como Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, levando-nos ao horror daquela outra violenta ditadura, a de Getúlio Vargas. O Brasil, sempre ocupado em esquecer, em olhar adiante, adiante e avante, deixando suas ossadas para trás.
A literatura brasileira ainda parece hesitar diante do período. Penso em textos fortes como o conto de Sérgio Sant’Anna, “O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”; ou o de Zulmira Ribeiro Tavares, “Cortejo em abril”, com o enterro de Tancredo Neves como pano de fundo. Nos últimos anos, escritores como Beatriz Bracher voltaram ao período em seus livros de ficção. Mas o livro de Luiz Roberto Salinas Fortes, memória, não ficção, com sua inegável qualidade literária, nos toca de forma diferente. Nos fustiga.
“E tudo ficará na mesma? Os mesmos senhores de sempre continuarão tranquilos, comandando como se nada tivesse acontecido? Maquiavéis baratos. Sim, pois Maquiavel não ensina, entre outras coisas, estar condenado à ruína o príncipe que, em vez de ferir mortalmente o inimigo, apenas o fustiga ainda que dura e cruelmente, deixando-o afinal intacto – ou quase –, pronto para a nova investida?”, escreve Salinas Fortes ao final do livro.
Ao ler estas palavras, me perguntei se o autor se referia à Ditadura ou a si mesmo (e a nós) como o que estaria pronto para a nova investida. À Ditadura, certamente, à elite civil brasileira e às Forças Armadas, os que decidiram como seria a chamada “transição”, nossa redemocratização capenga, que nos legou, por exemplo, esta Polícia que mata mais que exércitos em guerra. Volto ao poema de Szymborska:
Nada mudou.
Exceto talvez os modos, as cerimônias, as danças.
O gesto da mão protegendo o rosto,
esse permaneceu o mesmo.
O corpo se enrosca, se debate, se contorce,
cai se lhe falta o chão, encolhe as pernas,
fica roxo, incha, baba e sangra.
Nas ruas do Brasil, segue-se torturando. Corpos negros e pobres ainda se enroscam, se debatem, se contorcem, caem quando lhes falta o chão, encolhem as pernas, ficam roxos, incham, babam, sangram, defecam aos pés do torturador quando desce o cacetete sobre seus crânios, são desmembrados, somem como o corpo de Ísis Dias de Oliveira desapareceu em 1972, como o de Amarildo de Souza desapareceu em 2013. Homens que fizeram sua carreira política durante a Ditadura, como José Sarney e Paulo Maluf, a quem meu pai tanto apoiou, aí estão. Quantos ainda aí estão, prontos para a nova investida?
Mas o livro de Luiz Roberto Salinas Fortes foi também a sua própria última investida. Seu último ato de resistência. Para honrá-lo, devemos lê-lo. Lê-lo, ainda, porque os horrores daquele tempo ainda nos assombram. São monstros dentro do armário, sempre a sair se fechamos os olhos.