Pequena nota sobre “A Paixão”
Antes da editora paulistana Cosac Naify haver lançado a edição brasileira de A Paixão (São Paulo: Cosac Naify, 2014), do português Almeida Faria, publicado originalmente em Portugal em 1965, não consigo lembrar-me de ter ouvido falar do escritor ou da obra. Se aconteceu, de certa forma acabou passando despercebido, ou fugindo de minha memória. É constrangedor, agora que travei contato com o grande autor português, e não posso querer culpar as complexas relações literárias entre Brasil e Portugal. Ao mesmo tempo, não estou exatamente alheio à literatura portuguesa e, ao ler a respeito do livro, e principalmente ao ler o próprio livro, fiquei perplexo que ele ainda não houvesse entrado em meu universo mental, ou tivesse participado com mais presença de debates ao alcance dos meus olhos sobre a literatura contemporânea em língua portuguesa antes disso.
O livro não poderia vir com melhores recomendações. Na contracapa, aquele que muitos brasileiros consideram o maior prosador português do pós-guerra, António Lobo Antunes, é citado dizendo: “Na minha geração, lembro-me de sair A paixão de Almeida Faria e eu com 19 anos a pensar: Nunca chegarei aos calcanhares deste homem”. O italiano Antonio Tabucchi compara o português ao brasileiro João Guimarães Rosa e a seu conterrâneo Carlo Emilio Gadda, dois dos grandes experimentadores de suas línguas e da literatura ocidental no século 20. Não são palavras quaisquer. Ao ler sobre o livro em artigos no Brasil, muito se comentou sobre a influência que a obra teve sobre Raduan Nassar e a composição de seu primeiro e grande romance, Lavoura arcaica (1975). É necessário haver lido os dois livros para perceber o quanto aquela lavoura apaixonou-se.
Em A paixão, primeiro volume da chamada Tetralogia Lusitana, acompanhamos uma família do Alentejo por um único dia, uma Sexta-feira Santa, ou Sexta-feira da Paixão. Cada capítulo é dedicado a um membro da família, seus pensamentos, seus terrores, sua linguagem, suas paixões – que mantêm no livro sua acepção de sofrimento, de cruz que se carrega. Altamente lírico, o romance mescla vários registros de linguagem. Para um leitor brasileiro, a mim pelo menos, por vezes é difícil saber onde começa o experimental e sublime, e onde o registro de uma fala popular quiçá chã, que se mostra poética por nos ser distante, alheia. Mas talvez seja nisso que Almeida Faria se aproxime, como quer Tabucchi, de Guimarães Rosa. O que parece invenção ou até neologismo pode mostrar-se, com alguma pesquisa, o registro do mais castiço e arcaico dos vocábulos da nossa língua. Uma língua em constante fluxo de invenção, resgate e registro. É, ao menos, a impressão que deixou neste leitor sumamente ignorante das especificidades linguísticas do Alentejo, onde nasceu o autor.
Em sua estrutura, o livro pode ser ligado ainda a trabalhos como As I lay dying (1930), de William Faulkner, e The Waves (1931), de Virginia Woolf. Em nossa língua, sua leitura se prova uma experiência singular. Não será, certamente, leitura para todos. O romance mostra como realidade e língua se mesclam e são interdependentes, não por trazer esta discussão de maneira retórica, mas por demonstrá-la em ação. Realismo se torna impressão. Ouso aqui, provavelmente por lealdade pessoal, a ligar o autor ainda a Raul Pompeia. Aos que têm prazer com os meandros e giros de boca e língua da nossa língua, é prato cheio.
Almeida Faria nasceu no Alentejo em 1943. Seu primeiro livro, Rumor branco, apareceu em 1962, quando o autor tinha apenas 19 anos. Após A Paixão, a Tetralogia Lusitana seguiria com Cortes (1978), Lusitânia (1980) e Cavaleiro Andante (1983). Autor ainda de peças teatrais, novelas e ensaios, tradutor do alemão Hans Magnus Enzensberger, o português Almeida Faria adentrou o universo mental deste crítico ignorante para ficar. Um dos grandes autores vivos de nossa língua: lírica, castiça e inventiva.