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Metendo-me na vida de autores

É compreensível que muitos críticos desconfiem de uma ênfase exagerada na biografia dos autores para o estudo de suas obras. Trata-se de uma rua de mão dupla com tráfego perigoso nos dois sentidos. Por um deles, acreditar que a experiência pessoal de um autor possa explicar o que escreveu, e por outro, deduzir de sua escrita uma vivência pessoal que, ainda que muitas vezes esteja lá, acaba transfigurada pela escrita, transformada. No entanto, é comum esperar isso de autores à margem, e menos de autores que pertençam a grupos com poder político e socioeconômico. No Brasil, especialmente quando se trata da sexualidade do autor, passamos a nos mover em terreno minado. Basta ver a maneira como a sexualidade de autores como Mário de Andrade e Ana Cristina Cesar é até hoje tratada de forma velada. Como entre famílias em muitas casas brasileiras: sabemos, mas simplesmente não falamos a respeito.

Aqui, voltamos à questão inicial: isso realmente importa para estudarmos e apreciarmos suas obras? Talvez, não. Pois isso acaba sendo tratado de forma velada, muitas vezes, pelos próprios autores. Porque conhecem a sociedade (e, muitas vezes, a família) com que estão lidando. O que me incomoda é a maneira quase infantilizada com que se tratam tais escritores. Por vezes, ao ler sobre Ana Cristina Cesar, me pergunto quando passarão a tratá-la como adulta. Ou mesmo Mário de Andrade, que por vezes me parece um homem bem menos de carne e osso do que companheiros seus como Manuel Bandeira ou Oswald de Andrade. Para quem acredita que a escrita não é apenas a organização de signos numa superfície, seja ela de papel ou digital, e em vez disso acredita no autor inserido em um contexto histórico e político, parte de uma comunidade, isso conta. Conta para uma compreensão mais clara não apenas do seu significado, mas também de sua significância. De sua relevância total, estética, mas também política.

Posso falar, aqui, num espaço que não me permite grandes voos teóricos, apenas de maneira pessoal. Ainda me lembro da primeira vez que li, em um manual escolar de literatura, que Raul Pompeia seria homossexual. Para um adolescente vivendo no interior de São Paulo, sentindo-se em batalha contra a sociedade que o cercava, aquilo tinha um valor político. Hoje sei que sequer é clara a questão da sexualidade de Pompeia. Mas, quando finalmente li o seu grande romance O Ateneu, perceber ali uma violência distinta da que encontrara em outros escritores tinha um significado estético, sim, mas também político. Da mesma maneira que me foi tão importante um conto como “Frederico Paciência”, de Mário de Andrade, incluído em seus Contos novos.

O brutalismo estético de Pompeia (esse nome tão apropriado) talvez pudesse ser lido na clave do camp, discutido por Susan Sontag em seu famoso ensaio “Notes on camp”, em que fala sobre a influência da sensibilidade homossexual sobre a arte e a crítica do século 20. Seria também anacrônico. Sei que outros críticos o chamaram de “impressionista”, quando comparado à secura e à elegância de Machado de Assis no século 19 ou Graciliano Ramos no século 20. Terá sido algo da vivência de Raul Pompeia e, mais tarde, de Lúcio Cardoso que os levaram a esse brutalismo, esse travestir da linguagem, uma estilização quase ritualística da língua, como vemos em seus romances O Ateneu e Crônica da Casa Assassinada, respectivamente? Uma desconfiança do que é tido por “natural”?

Certamente, quando se trata da violência da poesia de Roberto Piva, não é possível negar esta ligação entre biografia e escrita. Seu desejo de transformação social através da poesia. Sua batalha constante contra a ascese cristã e o elogio da pobreza, em nome de sua visão dionisíaca da existência.

Como podemos esperar que o Brasil se torne um lugar mais tolerante, se mesmo nós parecemos colocar luvas ao tratar de certos assuntos na vida de nossos autores? Assuntos que certamente condicionaram sua experiência de vida e, portanto, sua visão estética.

Como Victor Heringer escreveu em sua “Opinião intempestiva: sobre a carta do Mário” [Automatógrafo, 15.06.15]: “Pelo visto, não é segredo para ninguém que o Mário era gay. Ou seja, vai ser aquela situação, todo mundo vai fingir surpresa, depois na boca miúda vão dizer que o Mário, o Mário nunca os enganou. (Pode ser outra coisa também. Ninguém conhece o conteúdo da carta.) Quando li as notícias fiquei pensando que tanto fazia a orientação sexual do sujeito, achei que o fuzuê era demais. A carta sai da gaveta, o Mário sai oficialmente do armário e vida que segue. Mas aí me lembrei do Machado. De vez em quando, como no caso do comercial da Caixa em que o Machado é representado por um ator branco, a gente precisa relembrar que o maior escritor brasileiro era negro. Porque a tendência é mesmo padronizar: embranquecer, heterossexualizar. Eu sei: às vezes é sem querer. Mas às vezes é bom também relembrar.”

Seremos mais adultos quando formos capazes de tratar nossos autores como tais. Como Mário de Andrade deveria ser tratado como adulto, livre, de carne e osso, com desejo por outra carne e osso.

Data

quinta-feira 25.06.2015 | 05:53

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