Corpos em Berlim: a ação do coletivo Centro para Beleza Política
O coletivo alemão Zentrum für Politische Schönheit (Centro para Beleza Política, literalmente) iniciou esta semana em Berlim uma de suas intervenções mais controversas e espetaculares. Após conseguir autorização de famílias para exumar os corpos de dez imigrantes que morreram tentando chegar à Europa, o coletivo trouxe-os à Alemanha para dar-lhes enterros decentes em cemitérios da capital alemã. Os primeiros corpos, de uma mulher síria e de sua filha de 11 anos, foram enterrados na terça-feira (16/06) no cemitério de Gatow. Caracterizando-os como “vítimas do fechamento das fronteiras europeias”, o coletivo pretende com a ação, em suas próprias palavras, derrubar o Muro da Europa, fazendo referência ao Muro de Berlim. A frase que o coletivo está usando para a ação, “Die Toten kommen” (Os mortos estão a caminho), agita o imaginário de um mundo que passa horas diante das telas de TV assistindo a séries e filmes de mortos-vivos.
A tragédia que vem se desenrolando no Mediterrâneo já custou milhares de vidas. A notícia de que em uma única noite mais de 400 pessoas haviam morrido chegou às capas de vários jornais, sem no entanto levar a qualquer mudança na política de imigração europeia, nada além de minutos de silêncio diante das câmeras e palavras ocas de condolências. Poucos dias depois, uma tragédia ainda maior mataria mais de 900 pessoas.
A ação do coletivo vem conseguindo ampla cobertura na imprensa alemã e internacional. Eles dizem querer forçar o governo alemão a caminhar sobre cadáveres se quiser seguir ignorando a tragédia. Em mim, gerou primeiramente admiração pelo grupo, mas não deixa de ser algo que também exige de nós certa meditação. O dramaturgo alemão Daniel Cremer levantou algumas questões importantes nas redes sociais, dizendo que preferiria ver uma ação que ajudasse os vivos, sem um espetáculo ao redor dos mortos, com o que ele chamou de “repetição da eterna narrativa dos morituros negros”. Cremer lembrou-se das ações políticas de ativistas gays no auge da “praga” (como muitos se referem à tragédia social e política dos primeiros anos da crise da Aids), quando as cinzas das vítimas da doença eram lançadas nos jardins da Casa Branca por grupos como o ACT UP. Alguns questionam o “gosto” de fazer “arte” com os cadáveres de imigrantes sem nome, outros pedem um debate em torno dos limites da “arte política”.
São questões certamente válidas. Concordo que uma ação de solidariedade aos vivos seria muitíssimo mais desejável, mas os mortos aí estão. Ainda que se trate de uma ação espetacularizada, levando muitos a questionar o quanto de “ego” haveria na ação do coletivo, me impactou uma expressão que o próprio Daniel Cremer usou para questionar a validade da ação, chamando-a de “antigônica”, em referência a Antígona, personagem da tragédia de Sófocles que desobedeceu às ordens explícitas do seu tio, o rei Creonte, para dar enterro a seu irmão. Antígona acaba ela própria morta, enterrada viva por ordem do rei. Uma vez iniciada a tragédia, não há volta. Trata-se de uma sucessão de mortes. Quero pensar na morte destes nossos irmãos no Mediterrâneo como algo que trará consequências para todos os envolvidos. Mas, na tragédia de Sófocles, primeiro é necessária a ação da heroína, que desobedece as ordens da autoridade. Talvez as intenções do coletivo não sejam totalmente puras, e Daniel Cremer esteja correto em questionar se pretendem apenas serem retratados pela imprensa como “salvadores brancos”. Mas algo precisa ser feito para deter a catástrofe que se desenrola no mar que já foi piscina da Europa e hoje está cercado, verdadeiramente, por um muro.
Imigrante eu mesmo, sinto-me às vezes sem saber por onde entrar neste debate. Em abril, quando ocorreu a tragédia dos 400 mortos, escrevi este poema abaixo. Com ele encerro, acreditando na validade da ação do coletivo alemão.
Mare Nostrum
“men lower nets, unconscious of the fact that they are desecrating a grave,
and row quickly away”
– Marianne Moore, “A grave”
Estive hoje no banco,
e com hinos,
sacrifícios e libações,
apaziguei os deuses
das finanças.
Estão pagos os impostos,
Angela. Preferiria tê-los
enviado aos gregos,
para lá do Mare Nostrum,
digo, vostrum.
Vossa antiga rua
de mão única
e agora vala
comum que sequer
requer pá, enxada.
Angela, diga-me,
ainda brilham
os diamantes
de Lüderitz?
Esse mundo,
eu sei, é todo
vala comum.
Que o digam
as areias do Namibe
onde jazem hereros
e namaquas.
Quanto a Cameron,
que lhe parecem hoje
os Cameroons?
Seguem retas as réguas
que traçaram, europeias,
eficientes, tão simétricas
linhas por onde passaram
em África e Oriente?
De Bruxelas a Berlim,
tapam-se com mãozinhas
enrugadas os olhinhos
assustados,
já que desde
tataravô e tataravó,
ninguém
mais da família
pôs os pés
naquele continente.
Algum tio-avô, talvez,
engenheiro em Suez.
Nada sabemos do Congo,
mas como são belas
as estátuas de Leopoldo.
Mandatos e protetorados,
Síria, Palestina,
Iêmen, et alia.
Agora, que se virem
na Itália
– se lá chegarem –
como se reviram as coisas
e corpos nas correntes
submarinas,
“neither with volition nor
consciousness”.
Esse mar, que já carregou cruzes,
hoje não suporta lápides,
e limpa-se, como um gato as patas,
sempre pronto para os turistas.