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Uma canção austríaca, uma fotografia síria, um poema ganês

Conexões em tudo, todos os que estão vivos, e os que morrem um pouco antes de nós. Você começa um texto querendo falar sobre uma canção de um cantor e compositor austríaco que acaba de aparecer no cenário. Na pausa para um cigarro, abre as redes sociais. Uma imagem aparece, uma fotografia. Nela, uma mulher segura seu bebê contra seu seio na cama, uma cama de casal, e a seu lado está ainda um menino, com certeza também seu filho, aninhado à cabeceira, com não mais de cinco anos de idade. Estão cobertos de algo branco, como se uma tempestade de neve os tivesse surpreendido durante uma canção de ninar. Uma das mãos da mulher parece ter se congelado no ato de erguer-se, talvez o movimento de proteger-se, proteger com uma das partes do corpo outra parte do corpo, mais essencial. E não somos como as holotúrias, aqueles animais marinhos que podem sacrificar uma parte do corpo, dando-a ao predador para poder escapar com as mais essenciais. Sobre eles, um homem paira como se fosse um inspetor. Os três sobre a cama estão mortos, a coisa fina e esbranquiçada sobre eles não é neve, mas o pó de escombros. Mortos durante a noite em um bombardeio. A fotografia foi feita em Aleppo. Você não tem como desvê-la.

Na noite anterior, você havia lido um ensaio de Teju Cole, um de seus vários textos sobre fotografia, no qual ele cita Susan Sontag, argumentando como a função defendida por fotógrafos de imagens de guerra seria a de nos despertar, mas como o fluxo constante dessas imagens acaba por nos anestesiar. Parecemos todos agora pacientes anestesiados sobre uma mesa, como no verso de abertura da Terra Devastada, de T.S. Eliot. Não, não todos. Alguns estão erguendo a mão direita para proteger a cabeça, enquanto a esquerda aperta o filho contra o seio. Enquanto isso, eleições para o trono de ferro em Washington aproximam-se, e amigos falam sobre o menor entre dois males, e parecemos reduzidos a defesas por estatísticas, tendo que escolher entre o que matará muitos e o que matará talvez um pouquinho menos. Uma escolha levará a centenas de milhares de mortos, a outra a talvez alguns milhares a menos.

Você então sai, porque está com fome, e caminha pelas ruas de luxo de uma capital europeia, o luxo que vem do dinheiro sujo de sangue do sistema colonial que construiu a riqueza das ruas, e não tem como evitar sentir-se com sorte por estar ali, explorando o mesmo dinheiro sujo de sangue. Você reprime o sangue do colonizador em si e reclama a herança também sua do sangue dos colonizados, e espera que isso seja algum tipo de absolvição. A caminho do restaurante, passa por vitrines e deseja, deseja aquele maravilhoso casaco de lã! Aquele deslumbrante abrigo de tricô! Sem se importar muito com as mãos que os tricotaram e teceram. Na calçada, uma mulher sentada no chão joga para o alto o que parecem ser uns trapos enrolados e, ao aproximar-se, percebe que ela está brincando com o filho, um bebê. Ocupada com isso, não ergue a mão.

No restaurante de kebab da esquina, toca pelas caixas de som uma canção em árabe, melancólica como sempre soam para você essas canções em árabe, e você pede uma cafta. Carne, daquela espécie cuja prisão em manadas para extermínio vai destruindo o planeta, e você jura que será a última vez, a última vez. Mas sabe que mente. Enquanto espera, reabre o livro de Teju Cole e começa a ler um ensaio sobre Kofi Awoonor, o poeta de Gana que foi morto durante os ataques de 2013 em Nairóbi. Pensa naqueles versos das Songs of Sorrow, de Awoonor: “I am on the world’s extreme corner, / I am not sitting in the row with the eminent / But those who are lucky / Sit in the middle and forget / I am on the world’s extreme corner / I can only go beyond and forget.”

Em casa, querendo voltar ao texto, você ouve de novo a canção do austríaco Oskar May, e alguns versos dizem: “Oh! come on, now let’s cut it out / We don’t have much time anymore / You keep on telling yourself your lies / But you know pretty well what you are.”

Há pouco tempo, houve uma polêmica nas redes sociais porque a famosa fotografia da menina vietnamita correndo nua de um ataque americano com napalm teria sido censurada pelo Facebook. Eu próprio compartilhei com amigos a opinião de que isso era absurdo. Mas, talvez olhando por outro ângulo, qual o propósito de postar aquela foto uma vez mais nas redes sociais? Ao mesmo tempo, como chamar a atenção para a guerra de todos contra todos em que estamos, ao ver mais soldados belgas nas ruas de Bruxelas, onde estou, caminhando com suas metralhadoras? Em outra canção de Oskar May, ele canta: “We have lost the war / We have lost the war / Centuries ago.”

Minha janela, ao terminar esse texto, está aberta na direção do bairro de Molenbeek, de onde sopra um vento.

Data

quarta-feira 28.09.2016 | 04:35

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