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A Paixão segundo Orlando
Em algumas horas, casais heterossexuais por todo o Brasil, com a sanção da mídia, do governo, dos pais, começariam a festejar outro Dia dos Namorados. Andariam de mãos dadas pelas avenidas e praças do país, visitariam cinemas, seriam vistos aos beijos e abraços do Oiapoque ao Chuí.
Nenhum casal sofreria ataques simplesmente por beijar-se. Era dia de festejar o amor, a paixão – essa palavra que já significou sofrimento. “A Paixão de Cristo”, “A Paixão segundo Mateus”, “A Paixão segundo GH”, esses títulos passam por minha cabeça. Na televisão, os comerciais mostrariam homens e mulheres demonstrando carinho e esta outra paixão nova nossa sem que alguém planejasse boicotes a qualquer uma das marcas.
O dia seria diferente para os homossexuais brasileiros, e todos os que não se enquadram nos moldes do patriarcado monoteísta. Teriam que tomar cuidado, saber bem onde estavam ao se beijarem, abraçarem, demonstrarem carinho em público.
Nosso quinhão de terra preparava-se para receber os primeiros raios de sol neste Dia dos Namorados, enquanto homossexuais eram metralhados num clube noturno nos Estados Unidos, em nosso mesmo continente americano. O horror que não cessa. O horror racista, o horror homofóbico, o horror machista. Quantos homossexuais foram mortos no Brasil este fim de semana? Quantos Orlandos cabem no Brasil?
Orlando. Orlando sobreviverá. Como no romance de Virginia Woolf, Orlando prevalecerá. Todos os Orlandos prevalecerão. Pelas redes sociais, estão dizendo “Rezem por Orlando”. Não. Dancem por Orlando. Cantem por Orlando. Façam sexo por Orlando.
Há que se ter solidariedade e desacato neste momento. Como escreveu nas redes sociais o jornalista Schneider Carpeggiani, do Suplemento Pernambuco, esse ataque tem força simbólica por atingir a comunidade LGBT em seu espaço de proteção e empoderamento: a pista de dança. O presidente dos EUA, Barack Obama, demonstrou compreensão sobre a comunidade ao mencionar isso em seu discurso sobre o ataque.
Penso na paixão de todos os mortos do patriarcado monoteísta. E penso na paixão de Federico García Lorca. Na paixão de Alan Turing. Na paixão de Pier Paolo Pasolini. Essa é uma página de literatura. Minha solidariedade e desacato chegam a vocês em forma de poemas. Contra todos os fanáticos monoteístas do patriarcado mundial.
Eros
fragmento de Safo de Lesbos
[queima-nos]
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Poema 99
Caio Valério Catulo
Um selinho mais doce que doce ambrosia,
Juvêncio, te roubei quando brincavas.
Mas não impunemente: pois da cruz mais alta
me vejo, há uma hora ou mais, pendido
pedindo-te perdão, e sem que minhas lágrimas
consigam aplacar a tua ira.
Assim que te beijei, teus dedos delicados
te lavaram o lábio com gotículas,
de modo que do meu no teu não resta nada,
pois julgaste ser mijo, não saliva.
Desde então me castigas com um amor negado,
e de tantas maneiras me excrucias,
que vejo, então, mudado o beijo de ambrosia
em amargor pior que o mesmo amargo;
por um selinho amor assim me castigou:
o que faria, ai, ai, se fossem dois?
(tradução de Érico Nogueira)
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[Com vinho, dizendo que é vinho, enche-me a taça]
Abū Nuwās al-Ḥasan ibn Hānī al-Ḥakamī
Com vinho, dizendo que é vinho, enche-me a taça,
Pois beber furtivamente não há quem me faça.
Pobre e maldito é o tempo em que sóbrio fico,
Mas quando trôpego pelo vinho torno-me rico.
Não escondas por temor o nome do bem-amado;
O prazer verdadeiro nunca deve ser ocultado.
(tradução de Paulo Azevedo Chaves)
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A origem
Konstantínos Kaváfis
Consumara-se o prazer ilícito.
Ergueram-se ambos do catre humilde.
À pressa se vestiram, sem falar.
Saíram separados, furtivamente;
e, ao caminhar inquietos pela rua,
como que receavam que algo neles traísse
em que espécie de amor há pouco se deitavam.
Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!
Amanhã, depois, anos depois, serão
escritos os versos de que é esta a origem.
(tradução de Jorge de Sena)
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De profundis amamus
Mario Cesariny
Ontem às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria
Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros
Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
é há quatro mil pessoas interessadas
nisso
Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso
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A piedade
Roberto Piva
Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento
abatido na extrema paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da
luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria
aos sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam
cu-de-ferro e me fariam perguntas: por que navio
boia? por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as
estátuas de fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos
pederastas ou barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam
que tenho todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos pavimentos
os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através
dos meus sonhos
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