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Matriarcado de Pindorama

Oswald de Andrade, que invocou o matriarcado entre nós após a Invasão de 1500, escreveu: “A alegria é a prova dos nove./ No matriarcado de Pindorama.” Mas hoje, 8 de março, Dia Internacional da Mulher, ao menos hoje, que homem nenhum fale, nem Oswald de Andrade nem eu. Deixo os leitores desta página hoje com as vozes de algumas mulheres do território:

Canto feminino kuikuro

vamos banhar
disse-me o meu amor
lave-me e tire um pouco do meu cheiro de copaíba
lave-me e tire um pouco do meu urucum
disse-me o meu amor

(tradução de Bruna Franchetto)

:

uãka kete
uhisü kilü uheke
utalitsügü kutsonkgitomi
umüngitsügü kutsonkgitomi
uhisü kilü uheke hegei

§

A noite não adormece nos olhos das mulheres

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres,
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.

A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.

— Conceição Evaristo

§

Ainda era Rio de Janeiro, Botafogo
Eu me confundi comendo pão
Eu perdi o óculos
Ele ficou com o óculos
Passou a língua no óculos para tratar o óculos com a língua
Ela na vigilância do pão sem poder ter o pão
Essa troca de sabedoria de ideia de esperteza
Dia tarde noite janeiro fevereiro dezembro
Fico pastando no pasto à vontade
Um homem chamado cavalo é o meu nome
O bom pastor dá a vida pelas ovelhas

— Stela do Patrocínio

§

Anatomia

Meu corpo se dobra na curva dos dias,
as ondas passam prenhes de pássaros, peixes e maresias
o mar bebe o mundo com sua língua de onda
e meu útero permanece vazio.

Desconsolada,
engoli naufrágios inteiros
com pescadores e navios
e meus sonhos ganharam pele de peixe.

(Ando com esta barriga murcha,
recolhida no labirinto das entranhas.)

Meu útero bebeu a tinta das letras,
comeu papéis e teclas,
guardou-se debaixo do travesseiro, para o quando,
guardou-se no bolso, numa caderneta fina, para se.

Tudo vão:
Meu útero apenas ganhou guelras
e respira submerso.

— Lívia Natália

§

uma mulher sóbria
é uma mulher limpa
uma mulher ébria
é uma mulher suja
dos animais deste mundo
com unhas ou sem unhas
é da mulher ébria e suja
que tudo se aproveita
as orelhas o focinho
a barriga os joelhos
até o rabo em parafuso
os mindinhos os artelhos

— Angélica Freitas

§

Oriki de Oiá-Iansã

Ê ê ê epa, Oiá ô.
Grande mãe.
Ia ô.
Beleza preta.
No ventre do vento.
Dona do vento que desgrenha as brenhas
Dona do vento que despenteia os campos
Dona da minha cabeça
Amor de Xangô.
Duzentas e uma esposas
O seu amado domina.
Oiá é a favorita.
Um dia de guerra bastou
Para a sua glória.
Orixá que abraçou seu amor terra adentro.

Com o dedo tira a tripa do inimigo.
Oiá que cuida das crianças
Toma conta de mim.
Seu fogo queima como sol.
Ela dorme dançando.
Epa, Oiá ô.
Não me queime o sol de sua mão.
Ligeira mulher guerreira
Corre veloz o fogo de Oiá
Oiá veloz faz o que fizer.
Fêmea forte com passos de macho
Moradora de Irá
Grande guerreira
Enérgica se ergue à mira do marido.
Vendaval e brisa.
Força de orixá que está no alto.
Oiá que vem à vila envolta em fogo.
Rara Oiá, rumores de amores com Ogum.
Aquela que dorme na forja.

Oiá na cidade, Oiá na aldeia
Mulher suave como sol que se vai
Mulher revolta como o vendaval
Levanta e anda na chuva
Assim é a grande Oiá
Eparipá, Oiá ô, he-hê-hê
Firme no meio do vento
Firme no meio do fogo
Firme no meio do vendaval
Firme orixá
Que bate sem mover as mãos
Firme orixá
Que tomou o tambor para tocar
E com pouco rasgou o couro
Epa, vocês tragam mais um tambor
Firme orixá
Epa, ela dançou sob a árvore aiã
Eparipá, as folhas de aia caíram todas
Orixá que é só axé
Castiga sem ser castigada
Dona do vento da vida.

Aquela que luta nas alturas.
Que doma a dor da miséria
Que doma a dor do vazio
Que doma a dor da desonra
Que doma a dor da tristeza.
Mulher ativa, amor de Xangô
Bela na briga, altiva Oiá.
Mãe lúcida.
Fecha o caminho dos inimigos.
Deusa que fecha as veredas do perigo.

Egungum de pé no pilão.
O que é isso?
Oiá espanta o babalaô, que nem apanha o seu ifá.
Oiá, o tempo que fecha sem chuva
Fogo no corpo todo
Riscafaísca – fogo.
Oiá corpo todo de pedra.
Com Oiá eu sou.
Com axé de Oiá na cabeça.
Minha cabeça aceitou a sorte.
Esse orixá me carrega no colo.

Amor de Xangô
Êpa, senhora sem medo
De segredo de egum.
Ialodê
Espada na mão
Bela no batuque
Do tantã tambor.
Ventania que varre lares
Ventania que varre árvores
Não nos desarvore.
Epa Oiá, maravilha de Irá.
Quem não sabe que Oiá é mais que o marido?
Oiá é mais que o alarido de Xangô.

(tradução de Antonio Risério)

Data

quarta-feira 08.03.2017 | 11:11

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