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A Paixão segundo Orlando

orlando

O romance “Orlando” foi publicado por Virginia Woolf em 1928

Em algumas horas, casais heterossexuais por todo o Brasil, com a sanção da mídia, do governo, dos pais, começariam a festejar outro Dia dos Namorados. Andariam de mãos dadas pelas avenidas e praças do país, visitariam cinemas, seriam vistos aos beijos e abraços do Oiapoque ao Chuí.

Nenhum casal sofreria ataques simplesmente por beijar-se. Era dia de festejar o amor, a paixão – essa palavra que já significou sofrimento. “A Paixão de Cristo”, “A Paixão segundo Mateus”, “A Paixão segundo GH”, esses títulos passam por minha cabeça. Na televisão, os comerciais mostrariam homens e mulheres demonstrando carinho e esta outra paixão nova nossa sem que alguém planejasse boicotes a qualquer uma das marcas.

O dia seria diferente para os homossexuais brasileiros, e todos os que não se enquadram nos moldes do patriarcado monoteísta. Teriam que tomar cuidado, saber bem onde estavam ao se beijarem, abraçarem, demonstrarem carinho em público.

Nosso quinhão de terra preparava-se para receber os primeiros raios de sol neste Dia dos Namorados, enquanto homossexuais eram metralhados num clube noturno nos Estados Unidos, em nosso mesmo continente americano. O horror que não cessa. O horror racista, o horror homofóbico, o horror machista. Quantos homossexuais foram mortos no Brasil este fim de semana? Quantos Orlandos cabem no Brasil?

Orlando. Orlando sobreviverá. Como no romance de Virginia Woolf, Orlando prevalecerá. Todos os Orlandos prevalecerão. Pelas redes sociais, estão dizendo “Rezem por Orlando”. Não. Dancem por Orlando. Cantem por Orlando. Façam sexo por Orlando.

Há que se ter solidariedade e desacato neste momento. Como escreveu nas redes sociais o jornalista Schneider Carpeggiani, do Suplemento Pernambuco, esse ataque tem força simbólica por atingir a comunidade LGBT em seu espaço de proteção e empoderamento: a pista de dança. O presidente dos EUA, Barack Obama, demonstrou compreensão sobre a comunidade ao mencionar isso em seu discurso sobre o ataque.

Penso na paixão de todos os mortos do patriarcado monoteísta. E penso na paixão de Federico García Lorca. Na paixão de Alan Turing. Na paixão de Pier Paolo Pasolini. Essa é uma página de literatura. Minha solidariedade e desacato chegam a vocês em forma de poemas. Contra todos os fanáticos monoteístas do patriarcado mundial.

Eros

fragmento de Safo de Lesbos

[queima-nos]

#

Poema 99

Caio Valério Catulo

Um selinho mais doce que doce ambrosia,

Juvêncio, te roubei quando brincavas.

Mas não impunemente: pois da cruz mais alta

me vejo, há uma hora ou mais, pendido

pedindo-te perdão, e sem que minhas lágrimas

consigam aplacar a tua ira.

Assim que te beijei, teus dedos delicados

te lavaram o lábio com gotículas,

de modo que do meu no teu não resta nada,

pois julgaste ser mijo, não saliva.

Desde então me castigas com um amor negado,

e de tantas maneiras me excrucias,

que vejo, então, mudado o beijo de ambrosia

em amargor pior que o mesmo amargo;

por um selinho amor assim me castigou:

o que faria, ai, ai, se fossem dois?

(tradução de Érico Nogueira)

#

[Com vinho, dizendo que é vinho, enche-me a taça]

Abū Nuwās al-Ḥasan ibn Hānī al-Ḥakamī

Com vinho, dizendo que é vinho, enche-me a taça,

Pois beber furtivamente não há quem me faça.

Pobre e maldito é o tempo em que sóbrio fico,

Mas quando trôpego pelo vinho torno-me rico.

Não escondas por temor o nome do bem-amado;

O prazer verdadeiro nunca deve ser ocultado.

(tradução de Paulo Azevedo Chaves)

#

A origem

Konstantínos Kaváfis

Consumara-se o prazer ilícito.

Ergueram-se ambos do catre humilde.

À pressa se vestiram, sem falar.

Saíram separados, furtivamente;

e, ao caminhar inquietos pela rua,

como que receavam que algo neles traísse

em que espécie de amor há pouco se deitavam.

Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!

Amanhã, depois, anos depois, serão

escritos os versos de que é esta a origem.

(tradução de Jorge de Sena)

#

De profundis amamus

Mario Cesariny

Ontem às onze

fumaste

um cigarro

encontrei-te

sentado

ficámos para perder

todos os teus eléctricos

os meus

estavam perdidos

por natureza própria

Andámos

dez quilómetros

a pé

ninguém nos viu passar

excepto

claro

os porteiros

é da natureza das coisas

ser-se visto

pelos porteiros

Olha

como só tu sabes olhar

a rua os costumes

O Público

o vinco das tuas calças

está cheio de frio

é há quatro mil pessoas interessadas

nisso

Não faz mal abracem-me

os teus olhos

de extremo a extremo azuis

vai ser assim durante muito tempo

decorrerão muitos séculos antes de nós

mas não te importes

muito

nós só temos a ver

com o presente

perfeito

corsários de olhos de gato intransponível

maravilhados maravilhosos únicos

nem pretérito nem futuro tem

o estranho verbo nosso

#

A piedade

Roberto Piva

Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento

abatido na extrema paliçada

os professores falavam da vontade de dominar e da

luta pela vida

as senhoras católicas são piedosas

os comunistas são piedosos

os comerciantes são piedosos

só eu não sou piedoso

se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria

aos sábados à noite

eu seria um bom filho meus colegas me chamariam

cu-de-ferro e me fariam perguntas: por que navio

boia? por que prego afunda?

eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as

estátuas de fortes dentaduras

iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos

pederastas ou barbudos

eu me universalizaria no senso comum e eles diriam

que tenho todas as virtudes

eu não sou piedoso

eu nunca poderei ser piedoso

meus olhos retinem e tingem-se de verde

Os arranha-céus de carniça se decompõem nos pavimentos

os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas

arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através

dos meus sonhos

Data

segunda-feira 13.06.2016 | 08:52

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