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A escrita do amor fora das normas do patriarcado brasileiro (segunda parte)

Na primeira parte deste artigo, menciono o trabalho dos homens mais conhecidos nesta discussão: Raul Pompeia, Adolfo Caminha, Mário de Andrade, Lúcio Cardoso e Roberto Piva. Suas obras e biografias são marcadas por uma relação tumultuosa com o patriarcado brasileiro de maneiras diversas. O suicídio de Pompeia, em pleno Natal de 1895, sempre terá um caráter simbólico para mim, ainda que não se possa esquecer que Pompeia comete este ato extremo com o propósito de salvaguardar o que chama de sua honra. Há no ato tanto um símbolo de afirmação como de negação. Mário de Andrade esconde sua sexualidade, camufla-a, e as anedotas dos bastidores do Grupo de 22 atestam a necessidade disso: há relatos de Oswald de Andrade usando a sexualidade do amigo-desafeto contra ele, tal qual Olavo Bilac usaria a de Raul Pompeia em suas rusgas na imprensa. Apenas com Lúcio Cardoso e Roberto Piva veríamos uma celebração quase bélica da exuberância de suas personalidades no meio cultural recatado do Brasil, especialmente se comparada com a discrição de seus predecessores, que têm, no entanto, toda a minha compreensão. Vimos que fim levou o irlandês Oscar Wilde na Grã-Bretanha cristã da Rainha Vitória, e o grego Konstantínos Kaváfis, vivendo na Alexandria islâmica, fora ao mesmo tempo tão honesto quanto tímido em seus arroubos homoeróticos pela poesia, publicando seu trabalho apenas em folhetos distribuídos entre os amigos. Décadas mais tarde, sabemos também que fim teve o italiano Pier Paolo Pasolini na democracia cristã de seu país.

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Em meio a isso, como foi o surgimento da poesia e prosa femininas no Brasil, de tradição sáfica ou não? Vale lembrar que, em um país como o Brasil, uma mulher que escreva sobre o amor carnal já se encontra fora das normas, ame ela homens ou mulheres. A mulher que insiste que seu lugar de escolha é a cama, não o fogão. A primeira poeta a ter sucesso no país e chocar a sociedade do seu tempo com seu trabalho foi Francisca Júlia. Um erotismo feminino pelo feminino é claro em sonetos como “Dança de centauras”, “Rainha das águas” e “Ondina”. Pouco ou nada sabe-se de sua vida, além de que ela escolheu o silêncio após o casamento e também escolheu o suicídio, como Pompeia, após a morte do marido. Seriam necessárias três décadas para que outras três escritoras tomassem vulto junto a seus companheiros de geração: a romancista Rachel de Queiroz e as poetas Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa, enquanto a poeta e romancista Patrícia Galvão permaneceria soterrada sob a biografia de um homem, Oswald de Andrade, e as anedotas em torno de sua existência como Pagu.

Sobre Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa, eu invocaria aqui um texto de outra mulher que não se pode contornar em uma discussão sobre a escrita das cidadãs brasileiras, lésbicas ou não: a poeta e crítica carioca Ana Cristina Cesar. Em seu artigo “Literatura e mulher: essa palavra de luxo” (1979), ela escreve: “A apreciação erudita da poesia destas duas mulheres se aproxima curiosamente do senso comum sobre o poético e o feminino. Ninguém pode ter dúvidas de que se trata de poesia, e de poesia de mulheres. Não quero ficar panfletária, mas não lhe parece que há uma certa identidade entre esse universo de apreensão do literário e o ideário tradicional ligado à mulher? O conjunto de imagens e tons obviamente poéticos, femininos portanto? Arrisco mais: não haveria por trás desta concepção fluídica de poesia um sintomático calar de temas de mulher, ou de uma possível poesia moderna de mulher, violenta, briguenta, cafona onipotente, sei lá?”

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Aqui, Ana Cristina Cesar critica as duas pioneiras famosas por seu tom elevado, suas formas classicizantes, os temas nobres, como se fossem uma manobra de esconder o que há de diferenciador na mulher em relação ao homem: o carnal, o corporal, o sexual. Nesse calar, a estratégia, talvez, justamente de apagar qualquer diferença entre a literatura masculina e a feminina, ou simplesmente uma estratégia social, dada a época em que escreviam, para poderem figurar no panteão literário dominado por homens, sem lembrá-los em demasia de que eram mulheres, quiçá apenas de leve. Este artigo de Ana Cristina Cesar é uma das mostras da inteligência fina da carioca, que não se entrega a um ativismo fácil, e seus questionamentos valem tanto para nossa discussão sobre o masculino e o feminino em literatura, quanto para um discussão bem-vinda sobre universalismo e localismo em relação a nossos modernistas. No artigo, mais adiante, ela viria a mencionar Adélia Prado como uma das escritoras a escaparem desta relação conflituosa com os poetas homens da época, fugindo de uma admiração subserviente como a que Ana Cristina Cesar crê identificar em Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa em relação a Carlos Drummond de Andrade, por exemplo. O artigo invoca também Clarice Lispector e sua narração como mulher, através de um narrador masculino, em um livro que tem por centro uma mulher, Macabéia: o seu grande A Hora da Estrela (1977), mas Ana Cristina Cesar não se debruça sobre o assunto para além da citação, deixando-o talvez como pista que complique a discussão, pista que despista.

Tudo isso se torna ainda mais complicado, dialético, se pensarmos em uma escritora sobre a qual Ana Cristina Cesar silencia em seu artigo, provavelmente por não conhecer seu trabalho, ainda bastante obscuro à época: Hilda Hilst. Como ver, neste contexto, a clara formação clássica de sua poesia, sem no entanto fugir do carnal, do corporal, do sexual? Vejamos, por exemplo, o primeiro poema da série “Do desejo”:

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.

Em um poema como este, há ao mesmo tempo uma invocação e uma fuga do sublime. Nobre e chulo, em ascensão e queda, Hilda Hilst era mestra desses fluxos e refluxos, dessas marés. Aqui, universalismo não se torna esconderijo. O próprio trabalho de Ana Cristina Cesar traria estas questões de volta, com suas reescrituras de poemas de Jorge de Lima, por exemplo, ou seus poemas absurdamente carnais. E, no entanto, a sexualidade de Ana Cristina Cesar continua a incomodar e ser silenciada 70 anos depois da morte de Mário de Andrade, aquele que foi assexuado pelo cânone. A carnalidade, sexualidade e até sua obra seriam silenciadas, por exemplo, na abertura da FLIP 2016 que deveria tê-la por homenageada, quando homens no palco passariam a noite falando de si mesmos, algo que não é de se admirar, já que Armando Freitas Filho vem solavancando a própria obra e biografia há décadas com o nome de Ana Cristina Cesar.

Para encerrar no espírito da carioca em seu artigo, o de complicar as coisas, é preciso dizer que em nossas discussões sobre gênero e sexualidade, há uma espécie de ponto cego: a forma como invisibilizamos questões de classe social e, principalmente, questões raciais nesta conversa. Se a relação com o mundo dominado por homens foi complicado para todas estas mulheres que citamos, de Cecília Meireles a Ana Cristina Cesar, é importante lembrar que, como mulheres brancas, sua possibilidade de inserção era menos difícil que a de escritoras negras como Carolina Maria de Jesus ou Stela do Patrocínio. A poeta e crítica norte-americana Audre Lorde, ela mesma abertamente homossexual, seria uma das críticas mais argutas deste silenciamento do racil na discussão do sexual. E é assim, com um poema curto de Stela do Patrocínio, que encerro esta segunda parte.

Nasci louca

Meus pais queriam que eu fosse louca

Os normais tinham inveja de mim

Que era louca

Nota do autor: para maiores informações sobre escritoras brasileiras, leia meu artigo “A textualidade em algumas poetas brasileiras do século XX e XXI” na revista Modo de Usar & Co.:

http://revistamododeusar.blogspot.de/2010/04/poeticas-contemporaneas-textualidade-em.html

Data

quarta-feira 10.08.2016 | 13:10

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