Língua
Sempre me perguntam aqui na Alemanha como é ser um escritor lusófono que vive cercado de outra língua. Eu costumava responder que isso é bastante frutífero, pois desnaturaliza a língua para o escritor. Começa-se, ou pelo menos foi meu caso, a prestar atenção a construções que são mesmo isso, construções, quando antes pareciam tão naturais quanto as plantas e os pássaros que me cercavam na infância. Os sons parecem ficar mais claros, e você volta a questionar se são arbitrários ou se há uma ligação íntima, antiquíssima, entre som e sentido. Discussão também antiga em linguística, ainda que hoje a relação entre som e sentido seja questionada por praticamente todos. Mas, como disse George Steiner, poetas parecem estar sempre do lado desta ligação íntima entre som e sentido, entre nome e coisa, defendida por Crátilo no diálogo epônimo de Platão.
Venho pensando muito na língua. Na nossa relação com esta língua que amamos e que no entanto está relacionada a tanto horror em nosso território. O texto abaixo é o único que escrevi nos últimos meses, desde que dei por encerrado meu livro novo de poemas. Sempre passo por um período de “secura” e pausa após terminar um livro, buscando um novo caminho. Especialmente agora, por sentir que esgotei, para mim mesmo, o módulo de escrita que usei nos últimos três livros, Cigarros na cama (2011), Ciclo do amante substituível (2012) e o novo, ainda sem título definido. O texto é um ensaio sobre a língua materna, que escolho chamar de língua natal e que é, no fundo, a língua da infância. Que foi usada de forma tão exuberante por mulheres e homens, como Euclides da Cunha, que perguntou quem escreveria sobre “as loucuras e os crimes das nacionalidades”.
Minha cidade natal tem uma Praça da Matriz, na qual estão a Matriz, e a Fonte Luminosa, e a Concha Acústica. São utilizadas raramente, a Matriz, a Fonte, a Concha. Minha cidade natal tem um Lago, que (não gosto de revelar) é lago artificial, represa de nada mais que um córrego. Minha cidade natal tem 131 anos de fundação, minha cidade natal tem um cemitério. Neste cemitério, dois jazigos de família, o dos Domeneck, o dos Cardoso. Ingresso em um deles não obedece leis rígidas. Não se confere o R.G. aos mortos. Há trocas. Não sei em qual jazigo jaz meu pai. Não estava presente quando morreu meu pai em minha cidade natal nem quando o deitaram eternamente em berço pacífico. Raramente penso em minha cidade natal. Às vezes, minha cidade natal me tira o sono, não por causa da Matriz, da Fonte ou da Concha, ainda que me lembre da Matriz, da Fonte, da Concha, mas porque é a minha cidade natal, e nascer, escreveu Murilo Mendes, é muito comprido. Na minha cidade natal, tenho um pai morto e uma mãe sem estômago, uma mãe, literalmente, sem estômago. Na minha cidade natal, tenho irmãos e irmãs que respondiam às demandas de uma mãe sem estômago exigindo o pagamento de nossas dívidas por seus sacrifícios com a sentença: “Eu não pedi pra nascer”. Não apenas na cidade natal, no estado natal, no país natal, no planeta natal, na galáxia natal: eu não pedi pra nascer, ponto final. Gosto de ter nascido. Não pedi pra nascer, mas gosto de ter nascido. Não por causa da cidade natal, do estado natal, do país natal, do planeta natal, da galáxia natal: gosto de ter nascido, ponto final. Minto. Parte de gostar de ter nascido deve-se ao ter nascido na cidade natal, no estado natal, no país natal, no planeta natal, na galáxia natal, ainda que eu não tenha pedido pra nascer. Mas às vezes não gosto de ter nascido. Teria pedido pra nascer, tivessem me perguntado? Talvez. Deveras. Mas gosto de minha língua natal, isso é certo. Gosto de minha língua natal e jamais tive problemas com minha língua natal. Minha língua natal é a língua natal de meu pai morto e de minha mãe sem estômago. Nunca desejei ter nascido em outra língua. Minha língua natal é esta, com que escrevo este texto não natalino. Minha língua natal é a língua com que se compra requeijão em minha cidade natal. Todos na minha cidade natal compram requeijão com esta língua. Com ela, compra-se requeijão, e leite, e goiabada, e alface, e quindim. Nem todos falam minha língua natal no meu país natal, ainda que muitos acreditem que apenas se fale minha língua natal em meu país natal. São várias as línguas natais em meu país natal, ainda que apenas uma seja a língua oficial. Minha língua natal é a língua oficial de meu país natal e oficial. Esta língua, ainda que se diga surgida no além-mar, é minha língua natal. É minha. É minha língua. É minha língua natal. Com ela, não compro requeijão onde vivo, caso onde vivo houvesse requeijão. É uma língua de história violenta, a minha língua, a natal. Para muitos em meu país natal, esta minha língua natal é o símbolo de sua destruição, da morte de suas línguas natais, dos seus pais mortos por gente que fala esta minha língua natal, suas mães sem estômago, suas mães de úteros invadidos por esta minha língua natal. Por que não a chamo de língua materna se ela é a língua materna e natal de minha mãe sem estômago? Por respeito às línguas maternas e natais de outros tempos. Minhas línguas maternas foram proibidas pela língua paterna. Minhas línguas maternas foram o tupi e o iorubá. Mas o tupi e o iorubá não são minhas línguas natais, são minhas línguas maternas proibidas. Minha língua natal tem 800 anos. Como é jovem minha língua natal, bela e culta. Quanta beleza já se disse em minha língua natal, quanto horror já se impôs com minha língua natal. Em minha língua natal já se matou e estuprou, em minha língua natal segue-se matando e estuprando. Mente-se muito em minha língua natal. Sinto-me responsável por minha língua natal. Minha língua natal me tira o sono e, quando sonho, é quase sempre em minha língua natal. Minha língua natal é minha, e de outros em outros 7 países natais e oficiais. Em todos eles, mata-se e estupra-se e mente-se, enquanto se grita nesta nossa língua natal. Que bela língua natal, como é linda minha língua natal. Que pena que tenho dos que não falam minha língua natal. Que sorte a dos que não falam minha língua natal, pois que são outros seus berços esplêndidos. Não há berços pacíficos, apenas o dos jazigos das famílias, sejam Domeneck ou Cardoso ou outrem. R.I.P. não é uma sigla de minha língua natal. Nem todo jazigo é um berço pacífico. Neste nosso mundo natal, há valas comuns, berços violentos. Xibolete. Xibolete é um jogo que se joga com uma língua natal. Ouvir dizer e disse-que-disse são expressões de minha língua natal. Então digo ter ouvido dizer que na Guerra do Paraguai, uma das guerras da minha língua natal, usou-se a palavra pão como xibolete. Pão. Diga pão, paraguaio. Diga pão paraguaio. Diga pão, estrangeiro. João. João é o nome do meu pai morto. Diga João, estrangeiro. João, meu xibolete. Quando eu morrer, espero que minhas últimas palavras sejam em minha língua natal. Com meu corpo, façam o que lhes bem aprouver. Eu não pedi pra morrer.