Centenário de Paul Zumthor
Nestes dias, eu tento evitar usar expressões como “leitura obrigatória”, porque livros que me foram importantes não necessariamente têm que ter o mesmo significado para outros. Além disso, nós todos temos um tempo limitado na Terra, numa sábia decisão por parte da Natureza (no lamento de Andrew Marvell, “HAD we but world enough, and time”), e nossas bibliotecas eternamente incompletas sempre escondem outras bibliotecas possíveis, de tradições que ignoramos muitas vezes por desconhecimento e educação falha, além dos motivos bem menos nobres ligados a nossas heranças colonialistas e imperialistas.
Mas hoje é o centenário do grande medievalista suíço Paul Zumthor (1915-1995), e uma homenagem com recomendações de leitura se faz necessária. Para cantores, cancionistas, poetas vocais e críticos, seus estudos sobre a tradição oral e em especial a poesia medieval são encorajadores, entusiasmantes e muito informativos para termos um conhecimento mais amplo e menos hierarquizado da tradição poética. Sua Introdução à poesia oral, publicado originalmente em 1983 e editado no Brasil pela editora da Universidade Federal de Minas Gerais em 2010, é uma leitura importantíssima, especialmente no Brasil, que possui uma tradição oral ainda viva e forte no Nordeste, por exemplo, e onde críticos desatentos seguem requentando o debate frívolo sobre “letras de música como não sendo poesia”.
Extremamente atento a várias tradições, em livros como o já citado, ou ainda em La lettre et la voix (editado no Brasil como A letra e a voz em 1993 pela Companhia das Letras), Zumthor analisa a poesia oral de tradições que vão da árabe à brasileira, com especial atenção à “literatura” medieval europeia, desde os trovadores, mas falando ainda de cancionistas contemporâneos como Bob Dylan, Jacques Brel e repentistas brasileiros. No Festival de Poesia de Berlim deste ano, convidado a falar sobre o(s) futuro(s) da poesia, voltei a discutir como muitas de nossas previsões sobre o desenvolvimento da literatura ainda parecem marcados por nossa hierarquização entre tradição oral e tradição literária; pela forma como acreditamos que novas tecnologias deveriam necessariamente levar a novas formas literárias, quando temos em grande parte observado como estas novas tecnologias têm permitido justamente um retorno a tradições milenares da voz, ou simplesmente a valorização de uma tradição que jamais morreu.
A população mundial, apesar de nossas narrativas históricas falaciosas e tendenciosas, sempre se manteve leal à tradição oral. É por isso que a poesia vocal segue sendo a forma de arte mais popular do mundo. Quando Michelle Obama convida a cantora e compositora Sara Bareille ou o rapper Common para se apresentarem na Casa Branca, ela não está deixando de ligar-se em arco histórico a uma figura como a rainha Leonor da Aquitânia, que tinha trovadores provençais como Bernart de Ventadorn apresentando-se em sua corte.
No Brasil, nossa poesia oral é fortíssima, com cancionistas cujos textos até mesmo sobrevivem na página, o que não é obrigação nenhuma de um poema oral. Noel Rosa e Angenor de Oliveira, o Cartola, foram poetas sofisticados, e melhores do que alguns de seus poetas-escritores contemporâneos, como vários modernistas hoje esquecidos. Leiamos, por exemplo, o texto de “Conversa de botequim”, de Noel Rosa (1910-1037):
Conversa de Botequim
Noel Rosa
Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d’água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol
Se você ficar limpando a mesa
Não me levanto nem pago a despesa
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro
Um envelope e um cartão
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas
Um isqueiro e um cinzeiro
Telefone ao menos uma vez
Para três quatro, quatro, três, três, três
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório
Seu garçom me empresta algum dinheiro
Que eu deixei o meu com o bicheiro
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa
No cabide ali em frente
Em minha opinião, tal poema não deixa nada a desejar ou dever aos poetas escritores modernistas das décadas de 1920 e 1930 no Brasil. Parece-me, em certos aspectos, até mesmo melhor que algumas das tentativas de nossos modernistas de captar a prosódia brasileira. Não tivesse eu lido Paul Zumthor, talvez jamais houvesse atentado para isso. Eis aqui meu agradecimento a ele em seu centenário.